SAUDAÇÕES A TODOS

DENTRO DO MEU RANCHINHO DE SAPÉ, SÓ HÁ DE ENTRAR OS GRANDES AMIGOS E SEMPRE HAVERÁ DE TER UM BOM CAFEZINHO E UM NACO DE BISCOITO DE POLVILHO. UMA CADEIRA COM ASSENTO DE TABÔA TRANÇADA, UMA MESA COM LASCAS DE JATOBÁ, UM BULE DE CAFÉ COM UM PAR DE XÍCARAS ESMALTADAS E UM BOM CASO PRÁ PROSEAR.





VEM PRA CÁ. SENTA COMIGO E VAMOS VIAJAR NO TEMPO...







segunda-feira, 16 de agosto de 2010

LIVRO: ENGENHEIROS DE PAU-A PIQUE

-  Este livro é dedicado aos meus pais, Aparecido e Erondina que com o pouco de cultura e conhecimento que conseguiram, romperam as barreiras do preconceito, e com dignidade fizeram dos filhos, homens e mulheres de bem.


PREFÁCIO DO AUTOR

Um dia , ensinado pela vida, e influenciado pela família de professores, resolvi sair um pouco do “técnico” e me dedicar a alguns escritos. Um pequeno tablóide, publicava mensalmente uma coluna com alguma história que eu escrevia. Com muitos erros de linguagem, fui acumulando crônicas, histórias e mensagens.

Este livro contem um pouco destas histórias, revisadas graficamente pelo meu filho, selecionadas de uma forma mais ou menos cronológica, que registra os momentos de minha vida dentro de um contexto narrativo, onde passo de personagem a narrador e observador, colocando as próprias emoções vivenciadas juntamente com o meus pais e irmãos.

Influenciado pelo meu pai, as minhas idéias são introspectivas e relatam emoções próprias, tendo dificuldades nas colocações românticas e detalhistas. As personagens são biográficas e expressam verdades das memórias e das pesquisas familiares.

Espero que o leitor possa viajar comigo nestas gotas de lembranças e orvalhar os pensamentos de pureza e sensibilidade.


Paulo Carvalho de Freitas



"POR QUE ESCREVER UMA POESIA SE NÃO SE PODE MOSTRÁ-LA A ALGUÉM?”
Aparecido C. Freitas




LEMBRANÇAS


Parece que o sonho se realiza todas às vezes que olhamos para trás e conseguimos transgredir o tempo; ficamos a nos comparar com os muitos sonhadores que não passaram de tentar imaginar os seus sonhos.
Começamos a imaginar uma casa de pau-a-pique à beira de uma ladeira de pedregulho cercada de infância e travessuras. Dentro um ninho de ordens, normas, critérios e fundamentos que torna a vida, ao mesmo tempo séria e divertida, pois sentimos a presença de um sentimento forte de união e alegria.
É de manhã e todos estão se levantando. Os olhos remelentos pedem uma passada de água no rosto para conseguir enxergar direito a falta de luz de sol e da pouca claridade da lamparina de querosene que se movimenta nos cômodos parecendo um pequeno vaga-lume. Na cozinha, o calor do fogo sai do fogão de lenha e se mistura com a fumaça que sobe dos tocos de lenhas mal queimados. Os sons das batidas da botina no solo tosco para limpar os vestígios de pó, se confundem com a gritaria das galinhas e pintinhos que acabam de sair dos poleiros.
Um cheiro gostoso de café fresco exala por toda a casa e um grito de ordem reúne todos na cozinha para saborear um copo daquela sagrada bebida com um naco de biscoito de polvilho.
O tempo é pouco, o chefe da casa se coloca a caminho e todos o seguem, cada um a responsabilidade de uma tarefa. Os pequenos se preparam para a escola: pegar o embornal, o caldeirão já preparado com a merenda e juntar disposição para caminhar mais de três quilômetros a pé para chegar ao Grupo Escolar. Os maiores seguem a rotina diária: encher a moringa, dar milho às galinhas, tratar dos porcos, prender os animais, separar as ferramentas. O caminho da roça.
Os pequenos dividem o dia em estudar e trabalhar. Na volta da escola seguem na rotina o exercício de fazer o novo aprendizado da vida: ganhar o direito de viver, conquistando o domínio das tarefas do trabalho do campo.
O trabalho é duro. Pés de café se levantam de covas profundas que precisam ser limpas e cuidadas. Mãos já calejadas por cicatrizes de ferimentos batizados com farpas pontiagudas ou espinhos preguiçosos que se deitam nos caminhos dos movimentos imprudentes de aprendizes lavradores. O pó da terra avermelhado, sobe como nuvens pousando sobre as folhas e as faces, molhadas com o suor do trabalho, dos movimentos de vai-e-vem das enxadas que lavram a terra sucumbindo a sementeira que insiste em renascer a cada tempo. Parece que a vida renasce ao início de cada eito. O som das modas sertanejas cantadas ao ritmo do trabalho mostra nos rostos jovens a descontração e a alegria de viver, sem a preocupação de busca do prazer pelo vício das drogas e das bebidas, pelo desconhecimento e pela fortuna do vício do trabalho. Para trás ficam os matos deitados ao solo lavrado e também ficam as marcas de uma realização, produto final da realidade de formação de pessoas untadas de valores, caráter e sentimentos de fé e cidadania.
A volta do trabalho começa ao pôr-do-sol. As cantigas sertanejas continuam pelos caminhos de volta para casa. Os rostos empoeirados debaixo de chapéus de palha com grandes abas, encobrem a inocência dos olhares e dos pensamentos.
A fila para o banho começa com a distribuição de outras tarefas como tirar a água do poço e botar água para aquecer no fogão. Não existe chuveiro, o banho de bacia deixa precária a limpeza que se completa com o uso da tolha de banho confeccionada de panos de sacos de açúcar, marcadas com os sinais da terra roxa das partes mal lavadas dos pés de cada menino.
Depois da roupa limpa, é hora de encher o “prato esmaltado de ferro agate”, com arroz, feijão e um bom pedaço de carne de frango.

- Vamos brincar de que : passa-anel, balança-caixão ou de roda?
- Ôs minino! Vem lavá os pé pra dormi - diz a mãe.
-Bença mamãe! Bença papai! - diz os meninos.
- Deus abençoe. - respondem os pais.

O colchão de palha mexido cede ao deitar e cava um ninho de sonhos de meninos que um dia certamente serão adultos e brilharão com suas lamparinas de conhecimento num mundo novo a construir.



LAÇOS DE FAMÍLIA

Eram quatro alqueires de terra divididos em quatro partes iguais. Eram também quatro irmãos. Três dos quatro irmãos ficaram com uma parte cada um. Uma das partes ficara com o pai. Uma das irmãs não participara da divisão no sítio, isto porque não se tratava de herança e sim fruto da economia de muitos anos de trabalho. A busca pela realização do sonho de ter a sua própria terra viera da união de pensamento dos irmãos que sempre viveram da terra alheia a prestar serviços na lavoura de café, de algodão e outras culturas. Também fora uma maneira de os “meninos”, como eram chamados os irmãos, unirem novamente a família, que sofrera a terrível perda da matriarca, mãe, quando ainda eram muito jovens.
O alqueire do pai ficara com o irmão mais velho que o adotou depois que todos os filhos e filhas se casaram. Ele bem que mereceu este presente, pois sempre foi fiel à sua saudosa esposa, cuidando sozinho do crescimento dos filhos.
O Sr. José, patriarca da família, não completara sessenta anos, mas já mostrava em sua face as marcas do trabalho no sol, no seu ofício de carreiro de que tanto se orgulhava.
Naquele tempo, já existiam as carroças, os caminhões e tratores, mas o som dos carros-de-boi ainda zunia como música nos ouvidos daquele homem, cuja vida dedicou ao trabalho duro e solitário para criar os filhos quando ficou viúvo, a mais nova contava nesta época, com quatro anos apenas.
De todos os anos que trabalhara quase nada havia acumulado, apenas um cavalo de sela e uma boa tralha. As roupas eram simples como simples era a sua maneira de ser.Com o seu olhar cabisbaixo, retraído, pouco falava. Pouco também se sabia da vida dele. Parecia carregar uma dor de um amor perdido, ou de uma vida sem sentido. Contavam-se muitas estórias de que o Sr. José muitas vezes tenha tentado se matar por causa da solidão e da companheira perdida. Mas venceu a batalha junto com os dois filhos homens que sempre deram suporte a sua auto-estima e a sua solidão.
- Tá bão, respondeu o irmão. O sinhor me permite intão só chamá só o Zé Batista. Ele tem me perguntado todo dia quando é que nóis vai chamá eles pra ajudá em arguma coisa.
- Pode ser. concordou o Aparecido - Desse povo eu gosto. Têm uns mininos direito bastante educado. Pode chamá.
Enquanto conversava o serviço não parava e as telhas se acomodaram todas e o telhado se fazia quase perfeito.
Já bem à tardinha, o cansaço era visto nos rostos de todos.
- Daqui a pouco já fica pronto. Aí é só respardá a cumunheira e já pode colocá os trem pra dentro.- Brincava o Aparecido colocando as últimas telhas.
E foi logo. João preparou a massa de barro, os meninos carregaram e de repente e as cumunheiras ficaram prontas.
O cansaço compensou o resultado do trabalho em família. Sentados tomando o cafezinho fresco coado na casa da Comadre Maria e trazido numa chaleira de alumínio escurecida pelo pretume do fogo do fogão a lenha, os irmãos contavam histórias e faziam planos para os próximos dias.
O Aparecido teria que desbravar uma mata fechada e destocá-la para a plantação de mudas de café, compromisso do contrato de trabalho com um fazendeiro para garantir o trabalho e o sustento da família.
- No mês que vem eu já vou começá a mexê no mato. - falava o Aparecido olhando no infinito como se tivesse sentindo o trabalho pesado do corte no machado.
- Temos que ir com muita corage porque o trabaio é brabo. Tem angico que dá pra dois home abraçá. E tem que ser no machado memo, num tem otro jeito.
- Eu vô dá uns serviço pro senhor por argum dia, se o senhor quisé. ” - Diz o irmão com espírito solidário. Minhas roça tão toda limpa. Dispois nóis troca serviço. Eu acho que compade João tamem pode ajudá um pôco. Não é cumpade?
- É sim, pois intão. Nóis ajuda sim. Falou João , com a sua pequena estatura, concordando também com a cabeça.

A seriedade nos negócios e nas atitudes era a sua marca registrada. A energia no tratamento com os filhos o fazia um homem de poucos sorrisos, mas de muita honestidade. Suas relações com as pessoas eram solidárias e de boa fé. Suas ações eram planejadas e a sua família era o que de mais precioso se tinha. Seu rosto magro e o cabelo liso e fino trazia os traços de sua descendência cabocla. (Sua avó teria sido índia ou bugre de origem nativa). Um homem de muitos dons. Sua intimidade com o trabalho da madeira resultava sempre em uma peça a mais na sala ou no quintal.
Aparecido se casara cedo, e a escolha foi dentro da própria família, pois a sua companheira também era sua prima legítima. Na época da compra do sítio, os seis filhos que Deus lhe dera já eram nascidos, sendo que o mais novo, o Paulinho, já completava os seus quatro anos.
As duas irmãs , Laura e Narcina se rendiam aos seus maridos e viviam em busca de uma boa relação com os irmãos, o que nem sempre eram compreendidos por todos.
Laura era uma mulher de fibra, seu rosto magro e queimado pelo sol mostrava no seu semblante o resultado do trabalho pesado da enxada e das colheitas de algodão. O cigarro era seu melhor companheiro. Transferia toda a sua amargura em pitadas longas e profundas naqueles bastonetes de tabaco picado, enrolados em palha de milho. Laura buscava nos irmãos a segurança que não possuía no casamento. Casara com o João, um homem de pequena estatura que buscava em seu trabalho o balanço da falta de formação escolar que não tinha.
Quando comprou o sítio, o Aparecido mandou fazer uma grande placa, com o patrocínio das “Casas Pernambucanas”, e colocou na entrada do sítio, na estrada que ligava Dolcinópolis a Populina, com os seguintes dizeres: “ENTRADA SITIO DOS MENINOS”. E assim ficou como “ponto de referência” para todos que por ali passavam. E lá ganharam o respeito e amizade de todos os vizinhos.



A CASA

O sonho do Aparecido de possuir uma terra, não o proibia de ter também o sonho de construir a sua própria casa. Os irmãos Paulo e a Laura já tinham construído as suas e estavam dispostos a participar do mutirão para ajudar o Aparecido a erguer, no pedaço de terra que lhe cabia, a tão sonhada construção.
Não precisava ser uma casa grande, bastava ter o quarto das crianças, o quarto do casal, uma cozinha com dispensa e uma sala para receber os móveis como o guarda-louça, o grande rádio de válvulas e receber as visitas que eram sempre muito bem vindas naquela família cabocla.
O desenho já estava na cabeça. O banheiro não fazia parte do projeto, o que chamavam de “privada” era para os sertanejos um luxo, pois quando precisava o pessoal usava as moitas mesmo, que ficava ali perto e não custava nada. Naquele tempo, o dinheiro era sempre muito difícil. Tinha-se muita fartura de comida mas dinheiro mesmo só nas vendas das colheitas e nem sempre o tempo ajudava. Muitas vezes perdia-se quase tudo por causa de uma chuva que fazia nascer ainda na vagem o feijão que estava pronto para colher, em outras era o sol que prejudicava a germinação das sementes que foram colocada na terra.
Todo o projeto da casa deveria ser feito com materiais tirados da própria terra, os tijolos eram muito caros e só serviam mesmo pra fazer casa de gente rica, sitiante ou gente da cidade. A casa do Aparecido , como as duas outras já feitas no sítio, seria feita de madeira tirada da mata e ripa de coqueiro: o folclórico pau-a-pique.
As peças para os esteios da casa deveria ser madeira de lei: arueira, jatobá ou outra madeira de cerne.Muitos dias se passaram e a soma do trabalho em mutirão fez multiplicar as ações e logo as paredes sugiram e começaram a tomar forma de casa.
As casas de pau-a-pique eram construídas em estruturas de madeiras brutas, fechadas com paredes de ripas de coqueiros, pequenas varas de paus roliços ou taquaras e rebocadas com massa de barro ou saibro misturados, algumas vezes, com casca de arroz. A cobertura sem forração é feita com troncos distribuídos em treliças num verdadeiro trabalho de engenharia.
No ripamento para as telhas são usadas também as pranchas de coqueiro do tipo guairova. O piso é feito com barro vermelho ou de saibro, nivelado pelos baldrames da estrutura da base. As escadas de acesso aos níveis mais altos eram construídas com pequenos troncos lascados em pranchas colocadas lado a lado.
Já estava quase pronto. Só faltava cobrir com telhas e rebocar com barro ( barrear). O mutirão trabalhava firme: o Paulo, o João, a Laura e os meninos.
- Joga a teia cumpade Paulo. Vamo vê se nóis cobre tudo hoje e fais o arremate do emborço gritou Aparecido de cima da casa.
- Trais as teias cumpade João. Vamo meninada, vamo depressa”. Gritava o Paulo para colocar os meninos e o João em serviço, para colocar as telhas mais perto, para depois serem atiradas para o Aparecido, no madeiramento da casa.
Os meninos correram para o monte de telhas que fora colocado do outro lado, e rapidamente, foram amontoadas ao pé do tio que com um toque mágico ia jogando uma a uma para cima.
Eram do tipo paulista confeccionada com um barro queimado branco-acinzentado, que ao serem colocadas sobre as ripas, formavam um desenho de sombra que ia se alastrando por todos os cômodos da casa.
- Tá ficano bonito cumpade. Logo vai podê si mudá se quisé. - elogiou o irmão.
- Eu num tô com muita pressa não cumpade. Eu ainda tenho que acertá arguma coisa lá com o Seu Zaíco. Mais eu tava cum vontade de vim barreá a casa nesse fim- de-semana. O que senhor acha? - perguntou com ao irmão erguendo as sobrancelhas como se querendo mais uma opinião do que uma concordância.
- Eu acho bão, compade. A gente convida todo mundo pra vim ajudá e fáis um armoço gostoso. O pessoar dos Vilela são muito bão e é capais que vem cum certeza.
- Num pricisa de muita gente não compade. Basta o nosso povo e os mininos que nóis fais bastante serviço num dia. Nóis vem no sábado e termina no domingo. Barro nós tem de sobra nos barranco do terreiro. É até bão que aumenta um pouco esse lado de cá. - falou mostrando uma parte da frente da casa que haveria de ser o terreiro de secar os grãos (café, arroz e feijão).
João ajudava no trabalho, porém não participava muito do assunto quando os dois irmão conversavam. Ele se contentava em ouvir enquanto brincava com a caneca de esmalte que acabara de tomar café.
O sol se pôs e a tarefa do dia estava entregue. Aparecido ainda tinha uma viagem e tanto ao voltar para casa e o frio das noites de julho era medonho...
- Nóis já vai, compade, tamo todo mundo muito cansado. Os menino trabaiaro muito.As ferramenta pode ficá aí com o sinhor. O sinhor guarda pra nóis. Eu vô levá só as otras traias.
- Rube, péga o cavalo, vamo arriá a carroça pra nós ir embora. Vamo aproveitá um pouco da claridade que tem pra chegá na estrada de Turmalina. Depois só vai ser o clarão da lua memo.
O cavalo foi colocado a postos embaixo da carroça de rodas de pau, que estavam com os braços inclinados com a arreata e foi só apertar as barrigueiras e colocar as rédeas e pronto. Estavam preparados.
- Até outro dia se Deus quizé. Quer dizê, até sábado, né?
A Laura puxou a porta da sala da casa que ainda estava aberta e amarrou com um pedaço de arame. A porta ainda não tinha tranca . Era feita de tábua de cedro colocadas na vertical e com dobradiças fixadas direto nos batentes roliços. A tranca de dentro era uma tramela lavrada com facão e por fora não tinha outro jeito senão amarrar com arame passado por um buraco feito para este fim.
- Deixa assim memo cumade, dispois eu vô arranjá uma fechadura daquelas de ferro pra colocá nessa porta, aí agente pode saí mais sussegado e evita que argum bicho entra pra fazer disorde. - disse o Aparecido tranquilizando a Laura que estava preocupada com o fechamento da casa.Naquele tempo, não existia a preocupação com ladrões, nem baderneiros. Os baderneiros podia ser um bicho do mato qualquer que invadia as casas em busca de comida fácil.
- Meninos, fala bença pros tio, munta logo no carrinho e vam'imbora. Mostrava o Aparecido a boa educação aos meninos.
- Bença tio. Bença tia.
- Bença padrinho. Bença madrinha.
- Deus abençõe ocêis tudo. Vão com a graça de Deus. - responderam o tios.
Os meninos se aninharam na parte traseira da carroça de rodas de pau que era puxado pelo cavalo “Piano” que tantos serviços prestava àquela família.
Os acenos de boa viagem foram respondidos até a carroça alcançar o topo da estrada. Dali para frente seria uma viagem silenciosa, pois sol já tinha se escondido e a escuridão veio junto com o cansaço dos meninos que se transformara em sono. Nem os solavancos da carroça sem amortecedor mexia com o sono dos pequenos.
Nos pensamentos, aquele homem jovem de apenas trinta e um anos, já sonhava com uma vida melhor para os seus filhos:
- Eles vão tê que estudá mais que eu. Eu vô lutá pra isso. - pensava. - e completava. - Agora nóis já tem uma casa no que é nosso. Só farta trabaiá bastante. Vamo prantá verdura naquele “brejo” e os menino já pode cuidá das roça (...) Um dia nóis vamo morá na cidade.
Uma porteira o tirou dos seus pensamentos:
- Rube, acorda, levanta daí detrais e vem abri as porteira,- O menino desceu, abriu a porteira, deixou passar e veio sentar orgulhoso junto com o pai no banco da frente da carroça. Ajeitou o pelego que cobria o banco e se arranjou segurando nas travessas laterais.
- Nóis vamo mudá logo pra cá, papai? -perguntou o menino curioso.
- Eu acho que sim. È só acertá as coisa lá com o seu Zaíco e podemos mudá. Fica melhor pra gente mexê no destocamento das roça.
- Eu gostei da nossa casa nova, papai. Ficou bunita. - continuou o menino - Só a água que é meio sargada, mais a Tia Laura disse que tem uma mina que dá água fresquinha lá embaixo depois do córgo.
- É...parece que tem sim. Tem muita coisa que fazê ainda dispois que a gente mudá...
E a carroça seguiu seu caminho vagaroso, levando na escuridão um homem que buscava o futuro acreditando que a lua logo viria com seus raios prateados para iluminar a estrada que levava junto da sua companheira.


ENGENHEIROS DE PAU-A-PIQUE

Naquele fim de semana o trabalho começou cedo. Os primeiros raios de sol já clareavam a cabeça dos meninos a baldear a terra que ia formar o reboco para as paredes da casa.
O trabalho parecia que iria render. Enquanto alguns meninos carregavam a terra retirada, outros ajudavam a preparar a massa que serviria para cobrir as paredes da nova casa.
Era preciso trabalhar em dupla: cada um cobria um lado da parede. Os dois pelotões de barro eram jogados na parede um contra o outro no mesmo momento e se fundiam num só bloco tampando as frestas existentes entre as ripas. Cada dupla com seu ritmo uma em cada parede, começando de baixo e subindo em tacadas coreografadas pelos movimentos de uma dança de duas mãos ensaiadas pela necessidade de ser solidário e buscar no outro somente a alegria de ajudar.
Já se ouvia lá num canto alguém a ensaiar uma moda qualquer:

“- Levantei de madrugada,
na minha besta bainha,
fui numa festa de reis,
na fazenda lagoinha .
Pertinho de Porto Alegre
eu cheguei lá de tardinha.

Fazendeiro Zé Valente,
família da gente minha...”

- É isso aí! - falou alguém lá no barreiro.
- Êta, mundo véio sem porteira. - Gritou o Paulo que trabalhava em uma das paredes. E emendou junto:-

"Sortei a mula no pasto,
dispois de dar um repasso,
dei uma vorta na sala,
sortei meus peito de aço,
vi uma morena trigueira,
fiz os verso no embaraço.
- Quando eu repiquei a viola,
ela caiu nos meu braço..."

E as modas contagiaram também o pessoal que estava trabalhando no barreiro e o ambiente ficou alegre e suave.
O trabalho rendia de fato. A terra vermelha amontoada era misturada e molhada com baldes de água salobra tiradas do poço. Com os pés descalços, os meninos pisavam sobre o barro e aos poucos formavam uma massa liguenta que custava descolar dos calcanhares. Para os meninos e meninas tudo era uma grande festa.
- Tráis o barro gente! Aqui têm trabaiadô. Parece que aí só tem cantoria!, reclamara o Aparecido por ter acabado o barro de sua caçamba.
As latas de barro foram chegando mais depressa e o trabalho seguiu seu rumo.
- Ô cumpade o meu estamo tá fazendo um baruio um pôco estranho. Parece que ele tá adivinhando a hora. Já passa das nove e ninguém aparece com êsse armoço - o Paulo já reclamava de fome.
- Pode deixá essa cunversa de lado, cumpade, que daqui eu já tô vendo a comade Maria c'os cardeirão. Vem chegando mais a Ronda e os menino, cada um cum imborná. Vai ser um banquete! Pode falá aí pro teu estamo que ele vai se fartá de tanto cumê. - o Aparecido trabalhava numa parede externa e conseguia ver a Maria, mulher do Paulo e a Erondina chegando com as vasilhas cheias, trazendo o tão aguardado almoço.
- Ê pessoal!! Vamo tratá de lavá as mão que o armoço já tá no toco. - gritou.
Foi uma movimentação geral. Os primeiros a chegar foram os meninos. Pareciam desesperados para se servir do almoço que trazia um cheiro tão gostoso que as lombrigas se remexiam por dentro das barrigas. De um lado a macarronada feita com molho de tomate natural e carne moída, trazida especialmente da vila, e de outro aquele arroz soltinho amarelado pelo pó do urucum (colorau) acompanhado de feijão e frango ao molho. Os caldeirões de alumínio que não ajustavam mais as tampas, de tanto que eram os amassados que continham, foram colocado um ao lado do outro em cima do banco de prancha de madeira que o próprio Aparecido havia construído.

- Peraí, primeiro os mais véio.- Gritou o Zé Batista , vizinho do sítio, quebrando o silêncio.
- Eu só quero cumê o curanchim do frango. O resto pode ficá pro cêis. - sugeriu o Paulo com seu jeito brincalhão.
- Fica tranqüilo Cumpade Paulo, nóis fizemo dois frango, vai sobrá curanchim. O Parecido gosta mais é do jogo, esse pedaço ele disputa com os minino lá em casa. - comentou a Erondina, chamada pelos cunhados de "Cumade Ronda".
- Mais hoje eu num faço questão de nenhum pedaço. Vocêis pode cumê quarqué parte do frango, se sobrá os pé pra mim já tá muito bão. O trabaio rendeu muito e eu tô muito agradecido a todos vocêis. Vamo armoçá todo mundo com a graça de Deus. - finalizou o Aparecido.
E os menino tomaram a frente da fila com os prato esmaltado de "ferro agate" (ágata) estendidos. As mãos hábeis das cozinheiras dividiam os pedaços de frango para que os mais velhos ficassem com as melhores partes, o que era parte da boa educação das crianças daquela família.
Depois de servido, cada um seguia por um lado, procurando uma sombra ou um canto para se sentar Só não tinha cadeiras, bancos era só escolher: o cabo do enxadão sempre servia pra alguém. O outro preferia o baldrame da porta ou o barranco do terreiro. À vontade...
Depois de matar a fome, todos tinham direito a cinco minutos pra cochilar um pouco por ali. As crianças aproveitavam para reinar pelos arredores a procurar um bicho ou alguma coisa para mexer.
Depois de entregar o prato satisfeito, o Aparecido ficou por ali a olhar de cômodo em cômodo a imaginar que talvez nem precisasse do domingo para terminar aquela tarefa. Se avançasse um pouco na tarde terminaria com folga.
- Ronda, pede pra cumade fazê um bolo pra nóis cumê na merenda. Vamo reforçá o pessoal que acho que nóis vamo terminá a tarefa ainda hoje. - sugeriu o Aparecido.
Era de costume ter três refeições por dia: às nove horas era servido o almoço, à uma hora da tarde era servida a merenda (café) e depois o jantar que era servido mais ou menos as cinco ou seis horas. Algumas pessoas serviam na merenda uma repetição do almoço, isto é, comiam da sobra do caldeirão ou da marmita.
- Pode deixá, Parcido. Nóis vamo fazê bolo de miio. Os minino gosta. Nóis já catemo dois saco de espiga de milho. Dá quase pra fazê pamonha. As espiga tão todas muito graúdas que só veno. - concordou Erondina
E foi-se embora os caldeirões vazios a balançarem nas mãos de quem os trouxe. Os guardanapos feitos de pano de saco de farinha de trigo ou de açúcar, que serviram de proteção ou alça para os pratos, jaziam pousados nos ombros das cozinheiras a esvoaçarem com o vento que refrescava um pouco do calor do sol que já se fazia alto naquela manha de sábado.
- Vam'imbora pessoar. Quem vai trazê mais barro pra mim?- o Aparecido já se colocava a postos pra começar de novo no serviço.
E cada um foi se movimentando em busca do seu posto de trabalho. Começando meio de devagar e entrando novamente no ritmo gostoso e alegre daquele convívio de amizade e cooperação.
O trabalho terminou cedo. Aparecido lavou as mãos, agradeceu a cada um que ajudara no mutirão, se afastou um pouco onde pudesse ter uma visão ampla da casa e gritou alegre:
- Quem disse que nóis num semo engenhero? Óia só que beleza! Nóis semo engenheiro sim. ENGENHEIROS DE PAU-A-PIQUE!


O CASAMENTO COM TIO CHICO

Das três casas que se ergueram no sítio, a casa do Aparecido foi a última a ser construída. Ele deixara para se mudar um ano depois dos irmãos porque precisava terminar a colheita de algodão, contrato de meeiro firmado com Sr. Zeíco, um sitiante do Córrego do Arrancado. A casa se destacava por ser a primeira da entrada. Os cômodos foram divididos para receber sua família composta de seis filhos: três homens e três mulheres. O mais novo, um menino, tinha apenas quatro anos e a mais velha, Mirnadel, treze
A esposa e grande companheira vivia para cuidar das coisas da casa e das crianças. Uma mulher de muitos dotes: organização e limpeza eram suas maiores virtudes. Na culinária não existia um só prato tradicional que ela não conhecia. Podia pedir canjica, bolo de fubá, pamonha, doce de mamão, doce de abóbora, biscoitos de polvilho e mais uma porção de receitas que ela guardava tão bem em sua memória. Na costura também tinha seus dons. Corte de camisa e de calça não tinha problema. Saia pras meninas, calção para os meninos e alguns bordados para os panos de prato. Naquele ano ganhara uma máquina de costura de pedal da “Vigorelli”, o presente que tanto sonhara.
Conta-se que o casamento dos dois se dera por uma contingência do destino. Eles eram primos de segundo grau e moravam na mesma região, um pequena colônia de lavradores próximo ao município de Macedônia no interior de São Paulo. Naquele tempo os namoros eram mais discretos e mais respeitosos.
Ela era uma moça bonita, recatada e de grandes virtudes. Eram poucos que não viam nela um bom partido para um namoro firme para compromisso sério. Ele era um moço viçoso, gostava de usar boas roupas e de frequentar boas festas. Sua vida era simples e se alegrava com seus amigos jogando futebol e cantando músicas sertanejas. Sabia afinar uma viola como ninguém. Rio Acima era a melhor afinação. Seus melhores companheiros nas cantorias eram seu padrinho Marcílio e seu irmão Paulo.
Quando acontecia um casamento, grande acontecimento naquele tempo, todos iam de caminhão pra cidade.
Os caminhões eram muito usado neste tipo de transporte, pois automóveis ou vans era sonho, principalmente para aquelas pessoas que mal conheciam o trem de ferro. O caminhão era preparado com uma corrente transversal que ligava uma borda à outra da carroceria que servia como apoio e segurança nas danças do jogo de molas quando passava nos buracos das estradas mal conservadas pouco acostumadas ao uso por caminhões ou carros.
Aparecido se animara quando viu a prima subir no caminhão e procurou um jeito de chegar perto para continuar uma conversa que já vinha de algum tempo. De repente o caminhão tropeçou, balançou e a mão na corrente se tocaram e os olhares se fixaram um no outro e, por algum tempo o calor do toque parecia uma sensação de sabor e adrenalina. As mãos não conseguiam se mover e o calor da face tingia de rosado o semblante dos dois.
O momento foi de tamanha emoção que não perceberam Seu Chico ao lado deles. Um homem sério, barba por fazer, jeito de matuto, numa voz grossa e sem rodeios rompeu o clima daquele momento:
- Cido, dispois ocê passa lá em casa pra nóis acertá esse negócio do seu casamento com a Ronda. Parece que essa estória que ouvi falá por aí tem fundamento. O negócio já tá muito adiantado. - Sua voz era compassada e direta.

- É bão que seja já na semana que vem. Eu num tô gostano desse negócio de rela-rela não.

O Seu Chico era o pai, e se sentiu no dever de intervir tentando resguardar a boa moral e costume de não faltar com o respeito.Naquele tempo pegar na mão só podia depois de assumir compromisso de casamento com a família. Se a moça se deixava tocar com estas liberdades, poderia ser taxada de mulher fácil e não conseguir bom casamento.

- Tá bão Tio Chico.- Respondeu o Aparecido sentindo que não adiantava discutir.- Pode dexá que no domingo que vem nóis conversa.

Foi uma cerimônia simples, como simples foi o começo da vida dos dois. Sem ter ainda uma direção certa nem um contrato de trabalho, o Aparecido resolveu aceitar a proposta do sogro de morar em sua casa, um rancho mal arrumado na beira da roça, e trabalhar no roçado de um sitiante conhecido que prometeu ajudá-lo.
Naquele tempo o Seu Chico estava morando sozinho,como colono num sítio perto de Macedônia.
Não foi por muito tempo que os dois viveram com Seu Chico, pois o seu jeito deseducado de tratar chegou ao limite da tolerância.
Um dia chegando do trabalho cansado, uma conversa foi a gota d'água para o Aparecido tomar uma atitude:

- Eu num quero ninguém espantano mias galinha por munto tempo aqui no terrero. É bão ocê arranjá um modo de vida logo, sinão nóis ainda vai tê enguiço.

Aparecido não disse nada, entrou para dentro, guardou as tralhas de trabalho e foi tratar dos porcos no chiqueiro.
Depois do banho de bacia e o prato de arroz com abobrinha, uma conversa com a companheira, foi dormir decidido a tomar um rumo. Levantou no outro dia bem cedo e não foi direto pra roça: antes foi em busca do seu destino.
Ao final do dia voltou com uma boa noticia: conseguira um lugarzinho ao sol cedido pelo Seu Minervino, uma família de sitiante para o qual ele já trabalhara o roçado.
O rancho já estava pronto, mas não tinha nada para levar: uns poucos trens de cozinha, uma lata de gordura, um litro de querosene, uma lamparina, umas roupa e algumas ferramentas. Cabiam tudo em duas malas.
A cama de dormir foi construída num girau, uma espécie de prateleira, com a largura de um metro e meio feita com quatro troncos roliços fincados no chão, mais quatro travessas amarradas com cipó e forrado com ripas de coqueiro, trançadas com embira de bananeira. O colchão era de palha de milho, rasgada bem fininho, e quando era mexido dava uma forma arredondada e macia.
O trabalho na roça era duro e ocupava o tempo de sol a sol. Na volta do dia-a-dia sempre encontrava no lar uma boa companhia e um bom colo para o descanso e a boa terapia do sono.
Com o passar do tempo vieram também as mudanças de vida. A primeira gravidez deu-se naquele mesmo ano e foi a primeira graça recebida pela família: uma filha linda que recebeu o nome de Maria Mirnadel e depois somente Mirnadel. Nos próximos anos vieram os outros: Rubens, Zilda, Nair, Marcilio e Paulinho.
Com as mudanças foram se fazendo novos amigos, novos conhecimentos, novos lugares. Foi o Geraldo Ignácio, Seu Miguel Lopes e Zeíco. Todos colaboraram na sua caminhada e no seu crescimento de vida , mas nada foi tão grande e tão importante quanto a presença constante da companheira, amiga e cúmplice. Um amor sem frescuras, com sobras de emoções para perdoar, para ouvir, sonhar e esperar.


A GATINHA CHANA

Depois da casa barreada e os acerto da colheita com o Sr. Zeíco, a mudança foi feita ainda naquele mês. O caminhão do “Seu Chiquim Pedro” um pequeno sitiante da região , já trouxera a maioria das coisas, o restante das coisas pequenas chegara na carroça, e estava pronta para descarregar. Para as crianças foi uma festa. Casa nova, amigos novos. As aventuras para os pequenos começara logo na chegada.
Os animais ainda se adaptavam ao novo ambiente. O cachorro Perigo, filho da cadela Campina logo se pôs a urinar pra todo canto, e logo se escafedeu no mato a correr algum preá que se colocara assustado com todo aquele movimento.
Tinha também a gata Chana, que parecia não entender bem aquela mudança. O lugar preferido dela era o paiol de milho e até então não havia se encontrado em toda casa. Miava alto parecendo querer uma explicação louvável.

- Paulinho, pega a Chaninha, dá um pôco de comida pra ela, sinão ela não se acustuma e vai imbora. - instruía a mãe, atenta a todos os detalhes, preocupava-se com o pequeno animal que tinha a função de caçar os ratos e camundongos que insistia em vir furar os sacos de arroz e farinha que ficavam na dispensa da casa.
Paulinho, filho caçula, saiu a correr atrás da gata para pegá-la. Conseguiu agarrá-la em cima da cama tentando pular a janela.

- Peguei mamãe, cadê a cumida dela? (Para o menino Paulinho aquilo seria uma grande brincadeira.).
- Taí na trempa do fugão. Mistura um pôco de arroiz cum feijão e põe neste prato de esmarte amassado. Sigura ela um pouco pr'ela cumê, depois pode sortá que ela vai ficano acustumada.

A gata Chana ficou logo seduzida pelos encantos daquele menino e começou a comer devagarzinho o prato de comida, até lamber as bordas de feijão respingado que a pouca coordenação do caçula deixou no caminho da concha do caldeirão ao prato. Um afago a mais não faz mal a ninguém. Dali a pouco a gata estava rolando num trapo velho escolhido num canto do quarto onde repousavam uma pilha de roupas e panos que ainda estava pra arrumar. O caçula se encantou com o animal e esqueceu totalmente o trabalho de descarregamento da mudança.

- Paulinho, larga mão dessa gata um pôco e vem já pra cá me ajudá a guardá esses trem na cozinha. Pega aquele bule ali e põe em cima do fugão. Pega a chaleira tamém!

O menino fez de conta que não ouviu e continuou a afagar a gata que já parecia estar no seu habitat natural.

- Peraí que eu vô dá um jeito nesse muleque.- Gritou o pai, vendo a desobediência do menino à mãe.
- Vem pra cá já, sinão eu te pego de cinta.

Num pulo a gata saltou para um lado e o Paulinho do outro. Pegou a chaleira e o bule e levou para a cozinha, colocou em cima do fogão e se apresentou à mãe.

- Tem mais arguma coisa pra levá, mamãe?
- Pegue esses prato embruiado nos guardanapo e vai pondo em cima do guarda-comida. Dispois nóis guarda direito.

Todo mundo estava envolvido. As poucas coisas da casa iam tomando os seus lugares. As meninas cuidavam das roupas, das louças, dos utensílios. Aos homens sobravam as coisas mais pesadas e mais rústicas como as coisas da dispensa, o estoque de arroz, de feijão, de açúcar e de sal.

- Papai, nóis vai colocá o saco de sal no chão memo?- perguntou o Rubens sabendo que na outra casa o sal ficava num girau para não pegar umidade.
- Põe aí memo por enquanto, dispois eu faço dois cavalete e com umas ripa de guairova nós faiz um girau novo e põe tudo em cima. - O pai falava com convicção, pois ele sabia como ninguém trabalhar a madeira e as idéias.
- Parecido, nóis esquecemo de arranjá um lugá pro pote. Dispois ocê tem que fazê um giralzinho pra por no canto da cozinha.
- Acho que naquele canto do outro lado do fogão, alí parece ser mais fresco.- Era a Erondina que estabelecia os espaços: o armário, a mesa, as cadeiras, o guarda-louça, etc.

Ao final da tarde, uma pausa para o descanso e para saborear um bolinho gostoso com café fresquinho feito no fogão de lenha ainda novinho, construído pelas mãos do mestre Aparecido.
Sentado no baldrame da porta da cozinha, o chefe da casa olhava os fundos e planejava a preparação do terreno onde seria construído o chiqueiro dos porcos. Era preciso ainda limpar, tirar os tocos e cortar as madeiras no mato para a cerca.
Um novo mundo e uma nova história. Era a “nossa casa” como dizia o Aparecido. O carinho e a paixão que sentia por este pedaço de chão transformava todas as coisas que construía em uma obra de arte. E tudo foi se transformando numa grande galeria. Uma galeria que ficou marcado nos corações daquela família e nos versos que rabiscava nas folhas soltas de caderno que sobrava das lições dos meninos.



LAMPARINA DE QUEROSENE

A lua com sua magia iluminava a noite que mal começara. Aparecido sentado numa cadeira de assento feito de taboa ao lado de sua companheira,olhava pensativo para o horizonte como se quisesse buscar a resposta a alguma pergunta. Talvez uma volta ao passado. A Erondina aproveitava a luz da lua pra debulhar umas vagens de feijão catador que colhera a tarde na hora que fora levar a merenda na roça.
Os meninos inquietos corriam de um lado para outro buscando algo para fazer. De repente, um deles veio com uma sugestão:

- Mamãe, pode chamá o Vardeci e o Jura pra brinca com nóis aqui em casa? Fais tempo que a gente num brinca junto.
- Fala lá pro seu pai, se ele dexá...- Respondeu a Erondina que sempre se colocava em segunda autoridade, deixando a decisão definitiva com o pai:

Esta era a palavra mágica. Pedir para o pai era mais difícil, pois sempre havia um motivo para proibir as crianças de fazer barulho para perturbar o descanso, pois a vida da lavoura não permitia exageros de ficar acordados até tarde. No máximo às nove horas da noite todos iam para a cama. Mas ainda era cedo: não passava das seis. Não custava tentar.
Aparecido continuava a olhar no horizonte num gesto pensativo com o cotovelo no joelho e a cabeça apoiada em uma das mãos sem prestar muita atenção na conversa das crianças.

- Fala você pra ele mamãe?, - insistia a menina Nair, baixinho no ouvido da mãe, que gostava de participar das brincadeiras com os primos. - A gente pode chamá a Rosa e a Creuza pra brincá tamém... Se elas quisé....

A Rosa e a Creuza eram as primas mais velhas filhas do Paulo que moravam na última casa do sítio na divisa das terras com Seu José Batista.
O Valdeci e o Jura ( o nome dele era Doraci) eram filhos da Laura e do João, irmã e cunhado do Aparecido.

- Tá bão. Só que não vai fazê latomia que seu pai num gosta de tropé quando ele tá descansano, concordara a mãe, chamando a atenção do marido: - Parcido, os menino tão querendo chamá os primo pra brincá aqui em casa. Pode dexá?- Falou com jeito, meio ressabiada, esperando talvez uma resposta negativa.

Aparecido olhou como se quisesse entender o que se passava. Não tinha motivo nenhum para proibir os meninos de brincarem. Eram crianças muito saudáveis e já ajudavam muito nos afazeres do sítio:

- Dexa. Pode chamá. Num pode é ficá até muito tarde, que nóis precisa descansá cedo. Amanhã temo que coiê o miio do meio do café. Todo mundo vai pra roça.

E lá foram todos os meninos alegres e felizes para voltar em breve com todos os primos prometidos.

- Vamo brincá de balança-caxão? Quem vai ser o primeiro?.- dizia o Valdeci da Laura que costumava liderar as brincadeiras do grupo.
- Ocê. Ocê fica pra procurá primeiro . Indicou o Marcilio. - Nóis vamo se escondê.
- Não sinhor. Vamo tirá na pedrinha. O úrtimo fica pra procurá”. Determinou então o Valdenci

E assim foi. O Paulinho, um dos mais jovens, ficou sendo o primeiro a procurar. O pai acompanhava tudo e viu, que de certa forma, os mais velhos o enganaram para que ele ficasse para procurar:
Todos em fila, um atrás do outro, curvados para frente:

- Balança caixão
- Balança você
- Dá um tapa na bunda e vai escondê.

E todos iam se esconder. Cada um escolhia um lugar mais difícil e depois ia facilitando para chegar mais perto do pique para se salvar e continuar se escondendo na próxima brincadeira. O primeiro a ser achado seria o próximo “procurador”.
Com toda aquele movimento, não foi possível que Aparecido não prestasse atenção nas brincadeiras dos meninos. Ficou observando o Paulinho correr de um lado para outro a procurar os escondidos.

- Jura. Achei. Um, dois, três - já tinha conquistado o direito de se esconder na próxima.

Vendo toda aquela saúde do menino Paulinho, Aparecido se lembrou de uma história que fez a vida daquele menino estar à prova de Deus e de um remédio:
Paulinho ainda era pequeno, começava a dar os primeiros passos pelo chão de terra batido da casa de pau-a-pique, quando encontrou uma lamparina de querosene largada num canto do quarto. Brincou com ela, derrubou um pouco do líquido no chão, levantou e saiu com ela para a cozinha.

-Mamâ. Mamã...

A mãe não estava por ali. A lamparina cheia de querosene balançava nas mãos daquele pequeno quase que caindo por causa do pouco controle que possuía. Caminhou mais um pouco, e se sentou, tirou o bico da lamparina e num gesto quase que instintivo levou à boca e bebeu aquele líquido repugnante.

- Mamã. Mamãããã!!!

A lamparina de querosene caiu pro lado e continuou a vazar pelo chão afora. Paulinho, sentindo aquele gosto horrível na boca, num choro quase sentido, chamou a atenção da mãe que veio correndo:

- Menino, que estrepolia é essa? O que aconteceu? Será que num pode ficá queto um pôco?
- Mamãããã!!!!
- Que qui essa lamparina tá fazeno aí no chão?. Ai meu Deus do céu, ocê bebeu querosene? Minha Nossa sinhora.

Foi um desespero só. Todas as atenções foram para aquele acontecimento. O Paulinho tomou querosene e poderia estar envenenado:

- Dá leite pra ele, mamãe. Se a sinhora quisé eu vô buscá lá na Dona Luzia do seu Carlo, dizia a Zilda, se colocando a serviço.
- Num precisa. Vai chamá o seu pai. Temo que levá ele na farmácia pra tomá argum remédio. - determinou Erondina, querendo dividir com o companheiro aquela angústia.

O choro continuou junto com a tosse. De vez em quando Paulinho perdia o fôlego e era preciso virá-lo de cabeça para baixo, e soprar no seu nariz para que ele voltasse a respirar.
Foram na farmácia e o farmacêutico diagnosticou:

- Não tem problema não. Ele tomou só um pouquinho do querosene. Não vai ser tão grave. Eu vou ministrar esse remedinho aqui e vai limpar o estômago dele e amanhã deve estar bom. Depois dê bastante leite e água pra êle.

O susto passou, mas o menino não ficou bom desde aquele dia. Deixou de andar, não comia direito, ficava só pelos cantos mole e sem movimentos.

- Eu acho que esse minino tá envenenado ainda. Temo que levá ele num médico pra vê isso. Ele num qué andá mais, num come, nem fala mais “mamã”. Se a gente num corrê nóis pode perdê ele. - dizia Erondina com a desesperada preocupação de mãe.
- Fica tranqüila, Ronda, amanhã nóis vai no Dr. Arnaldo pra vê se ele dá uns remédio pra ele. - tranqüilizava Aparecido, colocando a mão em seu ombro num gesto de carinho.

E foi assim. Muitas consultas. Muitas outras internações. Muito dinheiro gasto com remédio, com viagens, com hospital e nada de que esse menino reagisse. O Dr. Arnaldo diagnosticou como “anemia profunda” e receitava soro e remédios à base de ferro para tentar conter a situação. Nada dava certo.
A situação estava no limite. Não havia mais recursos e todas as possibilidades haviam sido usadas e nada de bom tinha acontecido. As esperanças estavam quase todas perdidas.
Um dia, Aparecido já desesperado, pegou o Paulinho e Dona Erondina e foram pra Populina conversar com um farmacêutico que o povo dizia que era muito bom. Era o Dr. Orozimbo, um senhor já de alguma idade que tinha uma farmácia naquela pequena vila. Naquele tempo os farmacêuticos substituíam os médicos nas doenças tradicionais e pequenos males.
Após ouvir a história do acontecido, o Senhor Orozimbo falou:

- Esse menino está com vermes! Ele está com muitos vermes na barriga. É preciso tomar um lombrigueiro forte pra limpar os bichos. Os vermes estão sugando tudo o que ele come.
- Mais nóis já demo lombrigueiro pra ele Seu Orozimbo, e num adiantô nada! - falou a Dona Erondina
- Agora a senhora vai dar este daqui.- Determinou o Sr. Orozimbo colocando uma caixa sobre o balcão. - É tetracloroetileno. Dá umas duas pílulas dessas pra ele em jejum de manhã. Depois vocês voltam aqui.

Foram pra casa. No outro dia foi feito conforme o farmacêutico havia dito. Houve uma limpeza geral na barriguinha do Paulinho. Junto com as fezes saíram muitas formas de bichinhos. Vermes de todos os tamanhos.

- Óia só. Como é que pode tantos bicho na barriguinha dele. Tamém tinha razão dele tá tão fraquim.- dizia a dona Erondina assustada olhando as fezes do menino.

Os dias passaram e outras doses do remédio foram ministradas. O menino começou a ficar esperto e voltou a ser mais alegre e a fazer as alegrias daquela família.

- Te-tra-clo-ro-e-ti-le-na, que troço mais difíci de falá. Como nóis podia imaginá que este bendito remédio fosse sarvá a vida do Paulinho Foi Deus e o Seu Orozimbo. Graças a Deus. - dizia aliviado o Aparecido pegando no colo e suspendendo no ar o pequeno.

Daquele dia em diante aquele “remédio” começou a fazer parte da vida de todos. O “lombrigueiro” passou a ser obrigatório a todos.

- Balança caixão. Balança você. - Continuava a brincadeira.
- Graças a Deus. Agradecia o Aparecido pela saúde do filho.
- Graças a Deus.


CURVAS DE NÍVEL


O sol nem sonhava em aparecer no horizonte e as batidas do machado já se confundia com os piados e os cantos dos passarinhos que nervosos pela invasão do seu habitat, buscavam socorro em lugares mais seguros da mata. Era o Aparecido que trabalhava já há alguns dias na preparação das terras para a cultura do café.
Alguma ajuda do Compadre Paulo e do Compadre João, mas o trabalho mais pesado ele mesmo sentiu nos braços e nas costas.

- Rube, Mirnadel, forma outra lera por ali. Esses gaios de angico deixa, que eu vô cortá mais pequeno, senão ocêis não consegue carregá.
- Papai, a mamãe mandou o sinhor tirá um parmito pra nóis levá pra janta. Tem um ali embaixo, perto daquela arueira. Ele já tá bão pra cortá. A Mirnadel mostrava apontando para um capão de mato ainda por cortar.

O extrativismo do palmito guarirova e macaúva, era uma ação normal naquele tempo. A preocupação de reposição natural já fazia parte da cultura. Nenhuma árvore-mãe do coqueiro era abatida e todos os “filhotes” eram preservados com o maior carinho.

- Vem cá, Rube, me ajuda a tirá o coqueiro. A mirnadel vai mais cedo e leva pra sua mãe. Depois ela aproveita pra ajudá ela a arrumá a janta pra nóis.

O menino seguiu em direção ao pai numa picada que dava direto na árvore do coqueiro que seria transformado logo mais no jantar da família.
Algumas semanas e uma clareira já se via na mata. Os troncos dos angicos iam se acumulando enquanto as ramas mais leves iam se amontoando em leras num desenho sinuoso que o patrão insistia em chamar de curvas-de-nível, uma proposta de técnica nova de cultivo para evitar a erosão. O barulho se calava somente quando o sol se punha e a cada amanhecer, uma nova etapa do trabalho se realizava.
O clarão se fez num todo e uma área de dois alqueires foi ao chão. Da estrada até a divisa das terras do Sr. Carlos era tudo derrubada. Um crime ecológico necessário.
Derrubar, descoivarar, destocar. Estes eram os verbos mais pronunciados naqueles tempos de preparação da terra. O fogo culturalmente era o grande auxiliar no trabalho de limpeza da terra. Depois de fazer os aceiros em toda a volta da derrubada, era tocado fogo nas coivaras e as línguas das chamas iam devorando tudo noite a dentro. Algumas madeiras de cerne mais duro como a pataca, demoravam vários dias se queimando. Durante a noite, quando o vento soprava mais forte, pareciam pequenos dragões a soltar rajadas de estrelas salpicando de brasas o chão negro da escuridão.
A terra limpa afofada pela chuva que veio em boa hora, trouxe a responsabilidade de iniciar a plantação do café. Projeto de todo aquele trabalho.

- Traça a linha, curva à direita, curva à esquerda. Curva de nível. As linhas das covas devem seguir o traçado do nível do solo, para que a água das chuvas se desloquem sempre na lateral e não provoquem erosões. - A técnica de plantio deviam ser seguidas à risca. E as orientações vinham do patrão.
- Curvas de nível. - orientava o Sr. Augusto Vasconcelos que supervisionava toda a preparação do terreno.

Depois das linhas traçadas, vão ser preparadas covas onde serão colocadas as mudas, chamadas de “balainhos”.
No meio de cada “rua” de café eram plantadas culturas regulares como o milho, o arroz e o feijão. Nos vãos entre os de pés de café sempre nascia um mamoeiro, um pé de melancia, de melão. Era a festa dos meninos. Cada fruta colhida substituía a caneca d'água quando a sede apertava e a moringa estava distante.
As covas de café deveriam ser limpas com freqüência, pois a terra da capina e as folhas das culturas auxiliares se encarregavam de cobrir as mudas ainda tenras e poderiam condená-las ao sacrifício.
A alegria foi quando as primeiras flores branquinhas se abriram no cafezal. Era de manhã e o sol nem tinha saído e os meninos estavam a postos para mais um dia de trabalho. A Zilda foi a primeira a perceber uma flor, e depois outra e cada um saiu correndo encontrando outras muitas que desabrocharam naquela noite, exalando um cheiro gostoso. E as abelhas já rodeavam com seu “zum zum zum”, levando nos pés o pólen da fertilização. Era a previsão que roça estava pronta para produzir muitos frutos e garantir o sustento da família. E mais uma vez o Aparecido dizia:

- Graças a Deus.



A MORINGA



Começava o mês de julho. O vento gelado chegava trazendo o desconforto do frio nos lares dos sertanejos. As únicas blusas feitas de flanela na velha máquina “Vigorelli” da Erondina faziam a diferença na casa.
As paisagens brancas dos nevoeiros cobiçavam a imaginação dos meninos e as aventuras fictícias forjavam histórias nas fantasias da infância.
Naquele mês, estavam todos de férias escolares e as tarefas diárias eram mais divididas. As responsabilidades menores ficavam com os pequenos e para o Paulinho, como caçula da casa, sobrava sempre o caminho da mina para buscar água com a moringa.
A moringa era uma espécie de pote de barro cerâmico totalmente fechado com duas aberturas: uma com um buraco maior, com formato de orelha, para ser a entrada de água e a outra com um furo fino com formato de mamilo de vaca, por onde, os mais experientes tomavam água sem ter a necessidade de usar caneca, despejando a água diretamente na boca.
Aquela rotina era necessária por conta de ser a água do poço de trinta e cinco palmos (chamada de cisterna), muito salobra e não servir para o consumo potável. Mal dava para lavar as roupas empoeiradas da lida diária, que precisavam ser fervidas com sabão para tirar o excesso de sujeira.
Eram quase mil metros de caminhada pelos trilhos de pedregulho até a baixada do córrego. A mina d'água ficava do outro lado e a travessia ficava por conta de uma ponte feita com troncos que nunca era usada, pois se dava preferência à pinguela de dois paus colocadas sobre às águas límpidas ligando as duas barrancas pouco profundas do Córrego do Tieta.
Da correnteza das águas subiam pequenas nuvens de fumaça parecendo borbulhar de fervura, indicando a diferença da temperatura que era suportada, vestidos apenas com as blusas de flanelas. Os dentes batiam trêmulos, produzindo sons de percussão, tentando aquecer os pequenos músculos, que pareciam pedras de gelos no arrepio das correntes de ventos que soprava de vez em quando.
A mina ficava incrustada na beirada da cerca do lado das terras dos Vilela. O Aparecido havia feito algumas adaptações para colher a água. Um grande buraco com tábuas e uma bica de telhas trazia a água de uma cor meio azulada com segurança e limpa para dentro da vasilha que a coletava. De vez em quando, era preciso fazer a manutenção da bica por causa da formação de limbos.
A vazão da água não era muito boa nesta época, e parecia que havia saído da geladeira direto para a bica, de tão gelada que era. Nos meses das águas, ela jorrava mais forte. O Paulinho aproveitava os momentos de espera da moringa se encher para cavar um buraco no barro branco de saibro com uma pequena vara encontrada por ali. O frio não liberava muita energia para reinar. Os dentes ainda tiritavam.
A moringa cheia era colocada dentro de um saco de estopas ( usado para estocar café) e colocado sobre as costas. O caminho de volta era mais penoso pois a ladeira de pedras exigia um esforço físico grande para equilibrar o peso da moringa que insistia sempre a levar-nos para baixo.
Paulinho parava para descansar e ficava a ver na baixada os movimentos dos irmãos que ainda manipulavam os regadores de folhas de lata, molhando as verduras de folhas que a geada da noite havia coberto com seu manto branco. As plantações de verduras e legumes eram uma opção de sobrevivência na roça, pois era delas que vinham os alimentos comercializados para obter dinheiro para o macarrão, o açúcar e o sal de todo dia.
Os trabalhos nesta época eram poucos por causa da estiagem que limitava o crescimento das sementeiras nas plantações de café. Guiados pelas orientações do chefe da casa, todos ficavam a cuidar das pequenas culturas de subsistência mantidas aos redores da casa: abacaxi, mandioca, milho, pomar de frutas, cana de açúcar e batata-doce.
As férias trabalhadas na roça tem um sabor especial de aventura sistêmica: é como um monitor que determina uma gincana com várias atividades a executar, e cada qual com o seu potencial vai concluindo e fechando a gincana diária, com o objetivo de seguir no outro dia com objetivos pré-determinados condicionalmente: se chover , se o milho granar, se o café secar, se o tempo melhorar, se as férias acabarem.
E o pequeno Paulinho seguia com sua moringa morro acima. Algumas vezes, o caminho seria a roça de café que se distanciava mais ou menos mil metros de casa, utilizando os atalhos pelas roças do Sr. Carlos. A moringa era depois passada para um dos irmãos mais velhos.
Naquela manhã o trabalho seria de plantar ramas de batata doce para garantir as mudas para as futuras plantações.




CIRCUNCISÃO SERTANEJA



Já era tempo de escola e o período da tarde era reservado para o trabalho, mesmo para os pequenos em idade de brincar. Naquele dia, a tarefa era carpir a roça de abacaxis que ladeava o lado direito da casa até a divisa com a roça da Laura. Paulinho estava sozinho, pois os irmãos estavam trabalhando na preparação dos canteiros de alho que logo deveriam ser plantados.
O calor do sol das três horas da tarde transladava o chapéu de palha de abas largas, suportado por uma tira de pano amarrada sob o queixo, e arrancava da testa o suor que respingava no chão afofado pela ação da enxada de cabo curto especialmente preparada para os braços pequenos que a empunhavam. Aproveitando a sombra de uma nuvem que encobria o sol, o menino se concedeu um intervalo de descanso e aproveitou para urinar num formigueiro de “correição” que minutos atrás o havia surpreendido. Por alguns momentos, ficou a observar a correria das formigas enquanto a urina penetrava no buraco. Como se estivesse querendo prolongar o intervalo de descanso ficou a segurar o pênis por alguns instantes mesmo depois de terminar de eliminar a urina que o incomodava. O prazer se prolongou um pouco mais quando sentiu um arrepio gostoso e o seu pequeno membro começou a se avolumar e com movimento de vai e vem na pele propulsora, fez acentuar aquele prazer sexual que começara a aflorar naquela criança de nove anos.
Por falta de informação dos pais, as crianças naquele tempo não eram cuidadas quando nasciam com problema de fimose e normalmente ficavam adultas carregando o problema para o casamento e para a infelicidade sexual. Não era incomum, as crianças que transitavam nuas pelos terreiros da casa para economizar roupas,, serem chamados de “bico de bule”, “bico de lamparina”, ou outro apelido que sugeria a forma esguia do seu pipi.
O Paulo, tio do Paulinho, estava sempre a lançar a sua brincadeira preferida:

- Vem cá “bico de bule”, dê um abraço no tio. Aquilo era o maior dos traumas transferidos para aquela cabecinha em formação e aos poucos foi se tornando um problema de exclusão, timidez e medo.

Ainda com seis anos de idade, não conseguia trocar de roupa, tomar banho na lagoa com os irmãos ou primos, fazer xixi ou expor de qualquer forma o seu pequeno aparelho genital.
Naquele dia, aquele momento de prazer diferente e excitante fez com que os movimentos de vai e vem da mão direita que segurava o membro se tornassem mais acentuados e um pouco mais profundos, o que fez com que a glande se mostrasse tímida e avermelhada. Aquela pequena mostra era inusitada, pois jamais havia acontecido. De repente passou pela cabeça infantil daquela criança que, forçando um pouco mais a pele, certamente toda a glande iria se tornar visível e aí então o pipi ficaria igual a dos outros meninos maiores e não seria o “bico de lamparina” que gerara a sua vergonha e timidez.
E assim o fez: com movimentos mais fortes e mais doloridos a pele que estava até então colada na glande se desprendeu e um grande número de pequenos vasos sangüíneos se romperam e fizeram jorrar gotículas de sangue acompanhadas de uma dor insuportável.

Num impulso de desespero, ou de grande coragem, a primeira atitude foi de buscar entre a caixa de primeiro socorros um atenuante para aquele ferimento tão dolorido.

- O mertiolate. Vou passar mertiolate! -pensou desesperado.

Naquele tempo não havia mertiolate incolor ou indolor. Pegou o recipiente, ainda de vidro. Voltou para fora da casa e atrás de uma parede, escondido de qualquer observador, iniciou o serviço de curativo. Com um pequeno chumaço de algodão na mão embebido com aquela tintura avermelhada, deixou cair sobre a parte exposta e ensangüentada do seu órgão. Apenas uma gota caiu e se alastrou por entre os pequenos veios do ferimento.

- Ai meu Deus! Socorro!

Um grito de horror e de dor ecoou pelos quintais afora e ilustrou uma corrida desesperada sem destino à busca de um copo de água fria que seria despejado como refresco anestesiante pós-operatório de uma cirurgia à meia mão, em uma fimose sertaneja.





A CAMINHO DA ESCOLA


O dia parecia igual aos outros. O sol ainda demorava para mostrar-se no horizonte e todos se movimentavam de um lado para outro na casa em busca de seus objetivos. Num canto da cozinha, sentado numa cadeira de palha de taboa, Paulinho olhava, com os olhos ainda remelentos da noite de sono, as chamas do fogão que ardiam num tronco de madeira a esquentar a água da chaleira. Sua mãe cantarolava uma cantiga qualquer enquanto manipulava os utensílios para passar o café no coador de pano.
As pequenas labaredas do fogão induziam o pequeno a imagens de angústia e desespero. O seu coração batia apressado. Cada minuto que passava aumentava a sua palpitação e parecia que o seu peito ia explodir. A expectativa e a ansiedade de uma novo acontecimento, mexia com toda a sua integridade física e emocional. Hoje, era o dia . O primeiro dia.

- Vai lavá essa cara minino!- dizia sua mãe.- Vai tirá essa remela!

E foi. E junto com ele seguia o desespero de enfrentar uma situação nova no seu pequeno mundo infantil.
Naquele tempo, a pouca vida social e a timidez lhe faziam sempre mergulhar em suas entranhas para vivenciar as suas estórias onde não existiam nada além do sítio, da família, dos animais e um mundo de aventuras solitárias.

- Pronto, já lavei o zóio. O quê que eu faço agora? - pensou sentando-se novamente na cadeira e ficando a observar sua mãe no preparo dos caldeirões de comida que serviriam de merenda .

- Vamo, minino, vai trocá de roupa que os outro já tão pronto - gritou sua mãe.

Ele demorou a levantar-se. O que ele queria mesmo é que a mãe lhe ajudasse naquelas tarefas. Que conversasse com ele . Que o encorajasse. Que lhe fizesse um gesto de carinho. Não! Ele sabia que não havia tempo e nem ambiente para isso. Com os seus seis anos de idade, já tinha alguma independência e qualquer carinho solicitado a mais era considerado “frescura” ou capricho.

- Anda logo, sinão o teu pai...

Antes que a mãe terminasse, se levantou depressa. Sabia que com a severidade do pai não se brincava e num instante estava de volta à cozinha:- Pronto! Já tô pronto - resmungou baixinho perto de sua mãe.

- Então toma o café e pega o teu imborná e o teu carderão de cumida. - instruiu a mãe em meia voz. - Os teus irmão já tão esperano no caminho.

O caldeirão era de alumínio, novinho em folha. Aquele brilho fosco lhe fazia lembrar o dia da compra no armazém da vila: foi a primeira dor no coração daquele menino. Não havia mais dúvida: havia chegado o tempo , não tinha mais volta.
Pegou o caldeirão pela alça. A tampa era fixada por um elástico branco preso nas duas argolas de fixação da alça. Arrumou o embornal no ombro e saiu.

- Bença mamãe! - e a mãe respondeu com uma voz carinhosa, e um olhar de afago:
- Deus te abençoe , meu filho! Vá com Deus!

E seguiu o seu caminho atrás dos irmãos que já puxavam uma pequena distância. No embornal azul pendurado no pescoço trazia além de um lápis, um caderno e uma borracha, a esperança nova que seus pais depositavam no futuro daquele menino, que começava os primeiros passos da educação no grupo escolar e haveria de fazer o ginásio, formação inédita para filhos de roceiros daquela região.





DOR DE BARRIGA


A caminhada para a escola era dura. Eram mais de três quilômetros que separavam a casa do sítio até a Vila onde se localizava o Grupo Escolar, única escola da cidade.
Por entre pastos e animais, meninos e meninas caminhavam em grupos, sempre com uma brincadeira ou outra que ajudava a passar o tempo.
Com o seu embornal e o caldeirão de comida, aquele menino caminhava cabisbaixo um pouco atrás do grupo. Naquele dia não estava se sentindo muito bem. No jantar da noite passada havia comido um pedaço de carne de porco que não fora bem digerido e a barriga doía e roncava como se tivesse alguma coisa caminhando por entre as suas entranhas.

- Eu vô tê que ir no mato... Num vai dá pra segurá até a escola. pensava.

Mas ao mesmo tempo tinha vergonha de pedir para os companheiros esperarem até cumprir aquela missão.

- Eu vô esperá mais um pôco. Lá no córgo tem um mato que dá pra se escondê.

O mato era o local onde se fazia as necessidades, pois naquele tempo não se costumava construir banheiros, fossas ou coisas do tipo para se satisfazer. Quando se sentia apertado era o mato ou a roça que servia de esconderijo, tanto para os meninos e meninas como para os adultos.
E a barriga piorava. Já passara o córrego e não tivera coragem de tomar a iniciativa. Todos os seus pensamentos giravam em torno daquele problema : a barriga roncava, as pernas tremiam e o suor frio descia pela sua fronte, até que alguém se lembrou:

- V'ambora Paulinho. Cê tá ficano muito pra trais. Anda logo senão nóis vamo deixá ocê aí. - A Zilda, sua irmã, que estava no último ano da escola (primário), comandava o grupo que seguia aquele caminho. - Porque ocê num anda mais depressa?
- Eu acho que preciso ir no mato. Tá doeno a minha barriga... Ceis pode me esperá?
- Agora não. Espera mais um pouco. Já tamo chegando na vila e é quase hora de entrá na escola. Vê se anda mais depressa.

Não dava mais. Foi firme, pensou positivo, andou mais rápido e conseguiu alcançar a turma.

- Parece que melhorou. Dispois eu peço pra professora e vô na privada da escola. - pensou.

Quando chegou na escola já estavam formando fila para entrar. Cada classe colocavam-se em filas com braço esticado, um atrás do outro por ordem de tamanho: os pequenos ficavam na frente. Entravam nas classe somente depois de cantarem o Hino Nacional. Era tempo de ditadura militar e o civismo era muito sério.
No segundo lugar da fila, com o braço esticado, olhar fixo para frente, tentava concentrar-se nas palavras do diretor. De repente, o pouquinho de auto-estima que ainda restava, se perdeu quando uma dor aguda o fez contorcer-se de dor. Tanto que foi preciso cruzar as pernas, pois as cólicas chegavam com toda força querendo abrir caminho para expulsar o motivo de toda aquela aflição.

- “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas” - cantava com a boca semi-aberta e os dentes cerrados de dor.
- “Deitado eternamente em berço esplêndido”. - parecia uma canção fúnebre. Os olhos já não enxergavam mais a Bandeira hasteada na frente do pátio. Tudo parecia uma grande tragédia.

Enfim começaram a entrar as primeiras classes. A sua classe era terceira.

- Meu Deus! Vou tê que aguentá. A hora que chegá na classe eu peço pra D. Vanda me deixá ir na privada.Ela vai deixá! - pensava com vontade de gritar.

Segurando a dor com os dentes cerrados, caminhou para a classe com a maior dificuldade, eram os passos mais difíceis que dera até então. Mas caminhava para a salvação ( imaginava).
Entrou na classe. Todos ficaram de pé em frente de cada carteira. As carteiras naquele tempo eram duplas, isto é, em cada carteira sentavam, dois alunos.

- Bom dia a todos! - disse a professora Vanda com um sorriso nos lábios.

Dona Vanda era conhecida como “Vandona” por causa de seu porte alto e sua maneira mandona de ser. Ela tinha uma personalidade forte que causava respeito nos alunos. Mantinha uma disciplina muito rígida na classe.

- Bom dia! - responderam em coro todos os alunos. - Para ele, o “bom dia” demorou uma eternidade.
- Porque num manda sentá logo duma vêiz? Eu num vô podê esperá. - pensou.

Não sabia se iria conseguir sentar. As cólicas aumentavam e a pressão para segurar já era quase insuficiente.

- Podem se sentar! - disse enfim a professora
- Ufa! Agora eu vou pedir. - nem se sentou. E pediu:
- Dona Vanda, posso ir lá fora? É que eu tô apertado.
- Agora não. Depois você vai. Agora senta e pegue o caderno e copie o cabeçalho da lousa.

Ficou mais um instante de pé olhando para a professora tentando entender a sua resposta.

- Não é possível. Depois de tanta espera. Bruxa!- pensou. - Acabara toda a sua auto-estima. Acabara tudo...
- Sim sinhora. - sentou-se.

O movimento de sentar liberou a pressão e uma cólica fatal veio levando tudo e não houve tempo para segurar. As pernas da calça de pernas curtas que usava foi o caminho mais próximo para dar saída para toda aquela sujeira que estivera fermentando há tanto tempo. O cheiro foi insuportável.

- D. Vanda, ele “cagou” na carça. Ele tá chorando.- falou o colega Serginho levantando-se assustado da carteira apontando em sua direção.
- Santa Maria! O que aconteceu? Porque você não me falou ? E agora?
- Que sujeira! - Exclamou a professora Vanda correndo em sua direção. - E agora, como eu vou dar aula?

O soluço e o chôro tomou conta e nada mais podia se fazer.

- Coitadinho!!! - Foi um coro geral...
- Serginho,vai chamar a irmã dele lá na outra classe. Ele vai ter que ir embora. Sujou toda a roupa.”

As lágrimas do choro de vergonha pareciam um desabafo de alívio para aquela situação embaraçosa na qual se metera. Todos ficaram olhando assustados para aquela cena. Ele era o centro de todas as atenções. Toda a escola ficou sabendo do ocorrido.
O banheiro, enfim. De que adiantava agora. Como seria amanhã quando teria que voltar à sala de aula?

- Tata, eu num quero mais vortá pra escola. Todo mundo viu. Ela num quis dexá eu ir lá fora. Eu pidi!- Tá bão. Vam'imbora pra casa. Lá a gente limpa melhor e troca essa roupa fidida.

O caminhar de volta para casa encerrava aquele fato inesquecível que deixou marcas profundas no sentimento e na memória daquele pequeno.
No outro dia a professora se encarregou de pedir a todos que esquecessem o fato para que o Paulinho não fosse ridicularizado na escola.
Daquele dia em diante a Dona Vandona como era conhecida pelos pequenos da primeira série, procurou ser mais branda com os alunos, principalmente para ir lá fora ( na privada).
Naquele mesmo ano o Paulinho foi o melhor aluno da classe e recebeu um lindo jogo de canetas da professora que cultivou um carinho especial por ele nos próximos anos.





CAMINHÃO DE LATA



Com um barbante de algodão, Paulinho puxava seu carrinho pelos trilhos do caminho da roça, na qual passava quando ia levar a merenda aos trabalhadores do roçado. O cachorro Perigo corria na frente, limpando o caminho como seu fiel segurança.
O embornal com as vasilhas de comida cruzava as alças nos ombros e pendia para um lado, deixando uma das mãos livres para conduzir o caminhão que, com destreza, desviava das pedras e dos tocos do caminho.
O caminhão que o Paulinho dirigia com tanta mestria era um objeto confeccionado artesanalmente: uma lata quadrada de óleo de soja, uma base de tábua e quatro rodinhas se transformavam num bruto potente que vencia todas as intempéries das estradas sem asfalto daqueles sertões.
O percurso por onde o Paulinho passava para chegar ao cafezal era também a roça do Vardinho do Seu Carlos, e lá estavam todos sentados tomando café, quando ele passou. O cachorro Perigo foi logo encostando pra farejar o cheiro bom da comida fresca que exalava no ar. De longe, o Vardinho já sacou uma brincadeira com o menino:

- Paulinho, cê tá muito atrasado com essa merenda aí, troca a marcha do seu bruto que já passa do meio dia, o pessoar já deve de tá com muita fome!
- Foi meu pai que fez pra mim disse com orgulho, pegando o carrinho com a mão, e mostrando ao Vardinho. - As rodinhas eu mesmo furei. Tem até hominho na “gabina”. e mostrava uma pequena raiz de pau que foi colocado no lugar do motorista.

Naquele tempo os brinquedos industrializados não eram economicamente viáveis na vida dos lavradores e as bonecas de palha ou de pano, os carrinhos de latas, os bichinhos de sabugo e outras criatividades eram o que tinham as crianças para brincar.
Foi falando e apressando o passo, afinal ele estava mesmo atrasado com a merenda, e isso podia render alguns puxões de orelha. O cachorro Perigo percebeu e acelerou a sua mijadinha no pé de café, seguiu na frente puxando a caminhada.- Até logo, Seu Vardim. O sinhor tá certo, eu vô andá mais rápido. Falou, colocando de novo o seu caminhão no chão.

- Mas a mamãe foi quem dexô eu trazê o caminhão. - pensava, tentando se explicar por causa do atraso. - Eu queria é que o papai me visse com ele, mais ele foi pra Jales vendê os tomate da horta. Eu quiria falá brigado pra ele, por causa dele ter feito esse carrinho pra mim. Nem pro Marcilio ele feiz. Eu acho que é porque o Marcilio já ta grande pra brincá. Mas o papai é muito legal. Tem veis que ele fica brabo, mais é porque nóis faiz arte. Que nem aquele dia que nóis num carpiu direito o abacaxi pra brincá com as furmiga. Até apanhamo... Lembrava. - Esse caminhão que ele feiz pra mim ficou muito bunito, o papai caprichô, ele feiz até os farol. Eu vô fazê uma ponte bem grande, só pra passá com ele.

- O Papai num sabe, - continuava pensando. - mais eu gosto dimais dele, ainda mais quando ele me leva com ele pra vender verdura nas colônia. Eu vô só pra abrir as porteira, mas ele conta um monte de história pra mim. Quando eu crescê...

De tão rápido que andava o Paulinho até se esqueceu de olhar para o caminhão que dirigia, vinha batendo nos tocos e raízes e até tombava às vezes. O Cachorro Perigo já sumira pelos carreadores afora.
Chegou na roça. Os meninos já estavam esperando, sentados nos cabos das enxadas. Eles se adiantaram por causa da chegada do cachorro, que era sempre o precursor da merenda.

- Ô Paulinho, cê demoro! Tamém, trais esse caminhão pra brincá, e nóis aqui morreno de fome.
-Foi a mamãe que dexô eu trazê. Dispois eu num vô mais podê brincá. Qui nem o Marcilio, que tem que vim trabaiá na roça. A Mamãe disse, que no ano que vem, eu vô tê uma enxada invêis de tê um caminhão.
- Eu vô é querê viajá pra Jales com o Papai! Ele é meu herói. Me conta história e faiz caminhão pra mim, ele é meu herói do coração.

A volta para casa foi calma e tranqüila. O caminhão do Paulinho deslizou por todo o caminho sem nenhum acidente. Com as vasilhas mais leves, o embornal já não fazia diferença na sua agilidade infantil. Os seus pensamentos eram tão rápidos quanto a pressa de chegar em casa, com tempo de construir a ponte de passagem para o seu caminhão, na estrada de mentirinha, feita debaixo do tamarineiro.Já de noite, depois de lavar os pés para dormir, foi pedir a benção para o pai que, ainda estava na sala a ouvir musicas sertaneja, junto ao grande rádio de válvulas.

- Bença papai. Brigado por ser meu herói do coração.

O Aparecido não entendeu nada daquelas palavras. Era muito estranho o Paulinho falar aquilo. Ele nem era de falar muito. Mas se resumiu a responder com a simplicidade de sempre:

- Deus te abençoe.

E mais um dia terminou por tocar no coração daquele menino que, descobrira agora, o valor de um sentimento novo de carinho, abstrato em gestos e silêncio.





BANHO DE BACIA


Era dia de descanso e tudo era calmo . Paulinho aproveitara aquele momento para ficar a sós com suas idéias e imaginações. Debaixo do pé de tamarindo era o lugar preferido de se brincar. Qualquer pedrinha ou pedaço de pau se transformava em um ser vivente ou ferramenta que transportava sua imaginação para alem das fronteiras do sítio.
Aquele dia era especial. Havia um brinquedo novo ganhado do pai. Uma lata vazia de querosene havia se transformado num caminhão de cabine reluzente e carroceria amarela, preparado para carregar qualquer coisa. Não sabia qual era o motivo do presente, talvez o aniversário ou uma satisfação pessoal do pai que gostava de trabalhar a madeira e objetos sucateados em utilidades e brinquedos.
Aquele brinquedo também era especial, pois ele ajudara a construir: os furos das rodas onde foram colocados os pregos como eixo de rotação, foram feitos pelas próprias mãos. Eram poucas as vezes que o pai lhe dedicava atenção especial e por isso estava muito orgulhoso. O Marcilio também ganhara um, só que o dele não tinha calota de alumínio. As calotas eram um pedido especial para o pai e consistia em um pedaço de folha de alumínio circular colocada entre a extremidade do “eixo” (prego) e os “pneus” ( roda de madeira). Debaixo do Pé de Tamarindo já estava até sendo construída em seu mundo particular, uma estrada que levaria as bananas produzidas no sítio até a cidade de Jales, de onde por certo seguiria outros caminhos.
Com casca de jatobá, um trator foi improvisado para abrir a estrada, e o caminhão novo transportava a terra, para onde seria construído a ponte sobre o Córrego do Tieta, pois aquela que lá existia já não dava mais para passar o seu caminhão, mais parecia uma pinguela.

- Paulinho! Vem tomá banho que nóis vamo pra vila. Chamou a mãe.
- Uai, o que nóis vai fazê lá ? perguntou o menino desinformado.
- Ué. Nós vai vê a fanfarra que veio de Jales se apresentá. Vem tomá banho depressa.

Uma bacia com água morna já estava preparada no quarto. Um pedaço de sabão de cinzas e a bucha vegetal eram os auxiliares para tirar o excesso de sujeira que insistia em acumular nos pés descalços. Tirou a roupa. Primeiro tinha que lavar a “cara”, depois que entrava na bacia, a água era um vermelhão só.

- Que será que essa tar fanfarra vem apresentá aqui na vila? pensava. - Será que já é a Independência do Brasil? Num deve de sê, porque os minino vai disfilá na escola nesse dia. Será que nóis vai tê que marchá tamém? Eu num sei marchá direito ainda... Peraí.

Saiu da bacia pelado e todo molhado, se aprumou numa posição militar e seguiu marchando em volta da bacia:

- Ordinário! Marche! Um dois, feijão com arrois, treis quatro, feijão no prato, cinco seis...

A água que pingava do seu corpo já fazia um grande barreiro no piso de chão batido do quarto, quando a mãe, escutando aquele falatório, interviu:

- Óia só minino, o que ocê tá fazendo? Toma jeito, entra logo nessa bacia e se lava depressa que tem mais gente esperano pra tomá banho. Vai, anda logo sô.

Algumas esfregadas a mais e de volta para fora da bacia .Uma toalha feita com saco de açúcar serviria pra enxugar o rosto. O corpo se enxugava com uns trapos de roupa velha que era guardado para este fim.

- Mamãe, já tô pronto. Tráis um trapo pra mim. E o meu carção tamém.

Ali mesmo no quarto se trocava, pois tinha vergonha de se mostrar pelado perto dos irmãos. As únicas que podiam vê-lo pelado era a mãe e a irmã Zilda que cuidara dele desde quando ainda era bebê.
A viagem para a vila levava mais ou menos uma hora com a carroça de rodas de pneu. Tinham que ir pela estrada de Populina porque pela outra estrada mais perto, tinha que passar por dentro do sitio do Seu Carlos e o Aparecido não gostava muito, além de ter muitas porteiras.

- Hoje é aniversário de Dorcinopi. O prefeito deve de tê gastado um dinherão pra trazê este povo lá de Jales. Deve de sê muito bonito, falô até no rádio. Comentava a Dona Erondina enquanto o Aparecido, sentado num banco lateral da carroça tentava fazer o animal que o puxava ser mais rápido.

- Nóis tem que chegá logo, sinão nóis vai perdê a apresentação.
- Acho que não. Essas coisa sempre atrasa. - comentou a Erondina. - Num pricisa de batê no animal anssim não. Dexa ele andá mais devagar, num tá veno que tem oito pessoa no carrim? Deve de tá pesado pra puxá.

E chegaram finalmente à vila. Estava tudo enfeitado. Na rua principal não podiam entrar com a carroça, estava reservado para o desfile. Um palanque grande estava montado para receber as autoridades: o prefeito, o delegado, os professores e os vereadores.Até o coletor de impostos normalmente era convidado como autoridade e participava das comemorações.
A cidade estava cheia. Nunca se viu tanta gente. Até em frente ao bar do Seu Davi já tinha gente sentados esperando o grande acontecimento. A carroça não pode chegar mais perto da igreja, por isso ficara guardada na casa da dona Santa, uma conhecida da família que morava na vila. Lá ficava mais guardada e o animal podia ficar mais à vontade.
A cidade de Dolcinópolis era uma típica vila de economia agrícola. Todas as pessoas se conheciam, pelo menos de nome. As famílias mais conhecidas estavam todas representadas: os Maraia, os Manente, os Ignácio, os Dolci, os Vilela, os Pereira, o Chiquinho Pedro, a família do Tatinho, do Seu Carlos. Até o pessoal do Ilídio, que viviam meio escondido na roça estavam por lá. Todos se cumprimentavam.

- Tarde.
- Tarde Dona Tiana. Como vai a Dona Luzia?
- Vai indo bem, Dona Erondina, graças a Deus. Ela num quis vim não, falou, que tinha que ficá em pé, era capaiz de se cansá. Já tá de idade né?
- É isso memo. A gente que tá mais nova já se cansa... Óia só, o Parecido já tá indo lá longe, dispois a gente cunversa mais. Té Logo.

E foram todos procurar um lugar em frente à sorveteria do Seu Miguelzinho, que também era o ponto de embarque dos ônibus “jardineira” que faziam as linhas de Jales e Fernandópolis. Mamãe, compra um sorvete pra nóis. Quero um daquele vermeio que o Serginho tá chupano.- Paulinho falava já chorando para provocar a mãe.

- Fica queto minino! Nem acabamo de chegá já começa essa latomia. Dispois o seu pai compra pra todo mundo. Senta aí e fica queto que já vai começá a passá os home da fanfarra.

Um barulho já se ouvia no início da rua.
Os meninos se ergueram todos e correram para as cordas que delimitavam os espaços. A visão não podia ser melhor. Parecia um sonho. Aqueles homens com as fardas coloridas de vermelho e branco, com grandes ombreiras azuis e linhas brancas a balançarem ao movimento das batidas.
À frente, dois enormes cadetes traziam grandes tambores muito enfeitados, que eram fixados em sua frente, como troféus que eram apresentados ao público extasiado. As mãos se levantavam juntas levando para cima os bastonetes que cruzavam por sobre os bumbos e batiam na seqüência do repique das outras caixas que os seguiam.

- Bum ...Bum...rá tá tá. Bum...Plá...
- Mamãe, vem vê! Óia que bunito. Tá todo mundo igualzinho...
- Bum ...Bum...rá tá tá. Bum...Plá...

E os componentes da fanfarra passavam altivos em passos de marcha sincronizados com as batidas do tambor. Nunca tinha se visto coisa igual naquela cidade. O povo simples e autêntico parecia entorpecido com os movimentos dos tambores, das caixas, dos pistões e tantos outros instrumentos que faziam uma sintonia diferente daquelas músicas sertanejas que estavam acostumados s ouvir nos rádios.

- Quando eu crescê eu quero sê um sordado. Eu vô marchá assim:
- Bum ...Bum...rá tá tá. Bum...Plá...

Paulinho não falava muito. A sua timidez sempre lhe podava. Mas pensava que agora podia ser um grande soldado e poderia participar de uma grande parada como aquela.
Depois dos desfiles, os discursos, o sorvete e a viagem de volta para casa. Não dava nem tempo de brincar de novo com o caminhão novo. Também não seria tão divertido continuar a construir ponte mesmo. Talvez hoje ele começasse a construir sim, um novo caminho para suas esperanças de vida





O CIRCO DO ZORRO


Na pequena cidade de Dolcinópolis era pouca a frequência de instalação de circos de animais e palhaços. Os circos de rodeio (naquele tempo se dizia “toreada”), eram mais freqüentes. Existiam também os “Circos-Teatro” onde as duplas sertanejas apresentavam suas tragédias e dramas como “Punhal da Vingança” do José Fortuna e Pitangueira, ou o “Milagre de um Ladrão” do Zilo e Zalo.
Os circos de espetáculos com animais amestrados como elefantes, tigres e onças eram instalados somente em cidades maiores como Jales, Fernandópolis ou Votuporanga. Uma família como a do Paulinho, que trabalhava na agricultura e só tinha dinheiro na colheita do café, dificilmente poderia assistir a um espetáculo destes.
As histórias dos grandes circos eram contadas pelas pessoas da cidade e comentadas pelos pais que ouviam no rádio as notícias da região. O Paulinho, com sua imaginação, tinha o seu próprio circo.
Debaixo do pé de tamarindo, ele montava o seu pequeno espetáculo: as velhas toalhas de pano de saco de açúcar serviam de lonas, que eram montadas em cima de uma estrutura de varas de mandioca, galhos e gravetos. O picadeiro era feito com palhas de arroz cercado com pedrinhas ou grãos de milho.
Naquele circo tudo acontecia: os palhaços andavam de pernas de pau, artistas faziam malabarismo, trapezistas ficavam suspensos nas cordas feitas com restos de barbantes, mágicos tiravam coelhos da cartola e os animais ferozes faziam shows de apresentações. Os cavalos brancos e baios corriam em volta do picadeiro levando os índios que montavam e desmontavam. De pé sobre o lombo em pelo dos animais faziam estalar os seus chicotes no ar, tirando da platéia, grandes salvas de palmas.
O grande momento era a hora do Zorro:

- Respeitável público, agora com voceis o grande cavalero mascarado, o sarvadô das minina e das criança, o Grande Zorro!- Dizia , segurando o hominho feito com um pedaço de sabugo de milho.

O cavaleiro mascarado com seu chapéu de caubói chegava em seu cavalo branco para salvar a mocinha raptada pelos bandidos. Com seu porte de herói, dominava os bandidos usando o seu chicote, e colocava a mocinha na garupa e seguindo o seu caminho e dando voltas no picadeiro gritando palavras de exaltação.
Todos eram convidados a participar do espetáculo: o cachorro Museu assistia de camarote, a cadela Campina, aproveitando um espaço entre as raízes do tamarineiro, esticava as suas orelhas todas as vezes que o Paulinho apresentava uma nova atração. A gatinha Chana nem sempre ficava até o final do espetáculo, mas os animais que passavam por perto como o galo Cocó e toda a comitiva de frangas, a galinha Cocota com seus pintinhos, paravam para dar uma espiada no grande espetáculo do Circo do Zorro.
O tempo foi passando e o pé de tamarindo ficou pequeno para tantas atrações. O tempo de brincar deu lugar ao trabalho da roça e às responsabilidades da escola. As fantasias do circo ficaram guardadas no silêncio dos pensamentos tímidos do Paulinho.
Debaixo do pé de tamarindo, muitas histórias aconteceram, mas a história do circo foi um grande marco na sua vida. Desenvolveu em sua personalidade a criatividade, a audácia e a objetividade. A falta dos brinquedos plásticos era um forte motivo para soltar a imaginação e criar um pequeno mundo, sem regras nem preconceitos, sem qualidades nem defeitos, onde só existiam as suas fantasias .
Um dia, já adulto, pode assistir a um espetáculo no “Circo do Beto Carrero”, o caubói brasileiro, um dos últimos circos de animais amestrados a se apresentar no Brasil. Alem de realizar o grande sonho e de suas fantasias de infância, reviveu na personagem do Cavaleiro Mascarado, o grande momento do seu circo que construíra debaixo do pé de tamarindo.
Paulinho, que um dia sonhou construir uma vida e uma família melhor e mais digna. Usando das suas habilidades artísticas, competências pessoais e perseverança, Beto Carrero, o Cavaleiro Caubói, realizou o seu grande sonho de construir um grande parque de diversões, onde alem de grandes espetáculos, criou espaço fixo para apresentações circenses, dando lugar aos grandes circos que morreram ou estão morrendo.
Na caminhada para o crescimento, muitos exemplos de vida encorajaram os objetivos do Paulinho, assim foi também o exemplo de seu pai, seu grande herói. Sem habilidades artísticas ou grandes conhecimentos acadêmicos, planejou um sonho e fixando objetivos, conquistou a sua realização.
Assim como a construção de uma casa de pau-a-pique, em que escolhemos cada pedaço de madeira, e artisticamente os colocamos em posição, Aparecido escolheu para cada filho a estrutura que oportunizou a construção de um futuro. Cada um soube aproveitar da melhor forma a estrutura recebida, e construíram com caráter e personalidade, a sua própria casa de conhecimento e amor.


O TEATRO DOS NÚMEROS


Era dezembro e no rádio já se ouvia as músicas natalinas nos comerciais das Casas Pernambucanas, Casas Buri e das Casas Riachuelo. As mensagens de “feliz natal próspero e ano novo” se propagavam por todos os lados: no rádio, nas casas comerciais e nas folhinhas de calendário que eram distribuídas nos armazéns e bazares.
Na casa do Aparecido, a movimentação era diferente. Já se tornara tradição que todos os anos a festa de natal da família dos meninos fosse realizada em sua casa. Naquele ano, seria feito algo diferente: estava sendo preparada uma grande apresentação que incluía até uma peça de teatro.
Todos deveriam participar. A Zilda e o Rubens estavam ensaiando um poema do José Fortuna que se chamava “O cobrador de Promessas”. A Zilda faria o papel de doutor e o Rubens de um lavrador Muitas poesias espirituais foram escolhidas pela Laura para serem declamadas pelos meninos. A maioria era tirada do jornal “O Clarim”, um informativo da União Espírita Brasileira que o Aparecido recebia regularmente pelo correio. Muitas composições de Chico Xavier e Divaldo Pereira Franco eram publicadas neste folhetim. O Valdecir iria apresentar uma enquete do solteirão que tinha que lavar a sua roupa todo dia.
Aparecido já havia preparado os textos de uma apresentação que ele estava orgulhoso de poder apresentar: Era dia de ensaio geral.

- Nóis vamos apresentá esse ano a peça dos números. Cada um vai ser um número. O Vardeci vai sê o número zero. Cada um vai falá o que representa e no final todo mundo fala.
- Eu vou ser o número um, Rube, ocê vai ser o dois, a Mirnadel o três, a Zilda o quatro, a Nair o cinco. Cada um pega o seu número. Os otro eu vô passá para os minino da cumade Laura. Cadê as minina do Cumpade Paulo?
A apresentação consistia numa elaboração fantástica para a cultura daquela região, e pretendia contar a história de cada número, a sua representação e os valores a eles atribuídos dentro do contexto da vida. A apresentação começara com a apresentação de cada número até chegar ao zero e depois era unido um a um dando um sentido de união, sintonia e fraternidade.
Todos ensaiaram, cada um com o seu número. Aparecido ficara como diretor e orientava as crianças junto com a Laura, que era a responsável pelas poesias e a parte espiritual, pois ela era quem ensinava o catecismo para os meninos.
O difícil foi decorar todas aquelas coisas que cada um tinha que falar. Muitas das falas tinham palavras difíceis para o vocabulário daqueles meninos.
Mas passaram os dias e a ansiedade chegou ao fim. Chegara o dia da festa. Dona Erondina e as cunhadas Maria e Laura trabalharam muito naquele dia que era véspera de Natal. Os biscoitos de polvilho e as bolachinhas de nata eram o que mais se consumia nestas festas. Foram todos convidados: os vizinhos, os amigos e os amigos dos amigos.
Naquele ano, vieram até o pessoal do Arrancado. O representante daquele lado foi a família do Sr. Américo, conhecido como “Seu Amerquinho”.
Estavam todos prontos e a platéia lotada, Aparecido chegou à frente de todos e deu boas vindas.

- Boa noite a todos. Salve, salve o Natal de Jesus!
- Sarve! - respondeu o Seu “Amerquinho”.
- Salve! - responderam todos

E cada um apresentou a sua parte. O Rubens e a Zilda entraram fazendo o Cobrador de Promessas, um poema de autoria do mestre sertanejo José Fortuna:

- Bom dia Dr. Perera, o sinhor tá me conheceno? - falou o Rubens descalço e trajando uma roupa bem caipira.
- Não, não conheço, mas adivinho o que você está querendo. Deve ser outro mendigo que aqui vem pedir esmolas, mas perdeste o vosso tempo, e trate de dar o fora. - a Zilda vestia uma roupa masculina com calça e paletó, parecendo mesmo um doutor.

(...)

E assim foi.

O Paulinho deveria declamar uma poesia d chamada “O amor”. Chegou e foi logo falando, com gestos e tudo:

- Muito se fala em amor, todos vive a falar. Mas na verdade são pouco, os que já sabe amar.
- Amor é puro egoísmo, que rasteja pelo chão?
- Que de treva se reveste? Isto é amor? Não é não! (...)

Todos fizeram a sua parte até que chegou a hora da apresentação da peça principal:

- E agora vô apresentá pra vocêis, um grande número!!! - disse o Aparecido aparecendo no palco.

E entrou alguém com o número um com mais ou menos um metro de altura. Foi uma grande risada e uma grande salva de palmas. E então foi realmente anunciada a peça que era o orgulho do Aparecido.

- Nóis vamo contar pra vocês agora, a história dos números. Cada número tem a sua história. Vamos ver?

Depois de alguns instantes entra o número um. Era o próprio Aparecido com o número um nas mãos, confeccionado em papelão. E saiu dizendo:

- Eu sou o número um. Sou único, e tô na frente, na vida sô o primeiro. No pódio sou campeão, na vida sô pioneiro. Da vida sou criador, do mundo sou o pedreiro.

E entraram os outros:

- Sou o número dois. Sou a base da famía, sou o par, sou o casal. Sou as rodas da carroça, sou parceiro, sou igual. Sou a dupla sertaneja, que encanta o pessoar. Sou os membro do nosso corpo, movimento principal.

- Sou o número trêis. Sou o tripé que segura a vida, sou a trindade divina. Sou a base dos trêis poder, onde a justiça predomina. Sô a trípli aliança, sou a idade de Jesus. Os trêis reis do oriente, que seguiro a tua luiz.

- Sou o número cinco. Sou os bico da estrela. Também os cinco sentido. Os cinco dedos da mão, que segura o boi bandido. Sou as vogal do alfabeto, que escrevo neste livro. Sou as divisão regionar, do nosso Brasil querido.

- Sou o número seis. Sou a metade de uma dúzia, e conto um quarto do dia. Eu sou o sexto sentido, que se usa na magia. Eu sou o número da besta, mas tamém a ave-maria. - Sou o número sete. Sou as sete maravia, sete dia da semana. Sô as cor mais principal, só as básicas não se engane. Na música sou as sete nota, as vida do gato mimoso. Com sete é tempo de escola, e as conta do mentiroso.

- Sou o número oito. Prô trabaiadô empregado, eu sou o tempo ideal. São oito hora por dia, que se trabaia em geral. Na hora de decidí, o juiz nem argumenta: pra ele num tem remédio, é oito ou oitenta.

- Sou o número nove. São nove mêis que os home, se demora pra nascê. E nove déca de vida, que o homem pode vivê. Sou a prova da matemática. Das contas que eu sei fazê. Eu sou grande e poderoso, dono de muito poder. Das sinfonia do Beethove, a nona que é a mais bela. Dos mêis eu sou setembro, as boniteza da primavera.

- Sou o número zero. Não sou nada de valor. Sô de tudo vazio. Tô no pobre, tô no fraco. Na vida do doentio. prás contas da economia. Num tenho nenhum valor. Não existo na conta do banco, Nem no borso do dotor.

E então o número zero ficou parado, com se estivesse muito triste e desconsolado. De repente cada número foi entrando novamente e fazendo par com ele dizendo, começando pelo número um:

- Sou o número nove. São nove mêis que os home, se demora pra nascê. E nove déca de vida, que o homem pode vivê. Sou a prova da matemática. Das contas que eu sei fazê. Eu sou grande e poderoso, dono de muito poder. Das sinfonia do Beethove, a nona que é a mais bela. Dos mêis eu sou setembro, as boniteza da primavera.

- Sou o número zero. Não sou nada de valor. Sô de tudo vazio. Tô no pobre, tô no fraco. Na vida do doentio. pras contas da economia. Num tenho nenhum valor. Não existo na conta do banco, Nem no borso do dotor.

E então o número zero ficou parado, com se estivesse muito triste e desconsolado. De repente cada número foi entrando novamente e fazendo par com ele dizendo, começando pelo número um:


- Ocê num precisa ficar triste zero. Olha só, comigo ocê forma déis.
- E comigo ocê forma vinte.
- E comigo ocê forma trinta.
- E comigo nóis dois formamo quarenta.
- E olha o quanto nóis formamo juntos: cinquenta.
- Do meu lado nóis ficamo sessenta.
- Olha como eu cresço perto de docê : somos setenta.

E agora nóis semo oitenta.

- Meu amigo zero, eu junto c'ocê formamo noventa.

E todos em seqüência enfileirados à esquerda do número zero (1.234.567.890) falaram em coro:

- E nós todos juntos formamo: um bilhão, duzentos e trinta e quatro milhão, quinhentos e sessenta e sete mil oitocentos e noventa.

E assim acabou a apresentação.

- Feliz Natal pra todos!!! - Disseram os atores todos em coro.

Depois dos aplausos todos foram comer os bolinhos e as bolachas . O comentário era geral sobre a beleza e a grandiosidade da apresentação. Isto deixou o Aparecido muito vaidoso demonstrando que, apesar de ser caipira, tinha virtudes de muita criatividade.

E passou mais aquele natal, e foi o último que ficou na lembrança de todos...




O BOI TORNADO



Naquele tempo ouvia-se falar muito de assombração. As pessoas mais velhas tinham sempre uma história para contar: de um homem que virava toco, de uma luz que caminha no pasto à noite, de gemidos ouvidos em casas abandonadas, e outras.
Na casa vizinha à do Seu Zé Batista, veio morar um homem chamado de Zé de Freitas. Este homem era cheio de contar histórias e anedotas. Em todas as reuniões que se organizavam, como festas, terços, velórios, lá estava uma rodinha ouvindo as histórias dele.
Outro dia, o pessoal se reuniu pra fazer uma pamonhada e o “Seu” Zé de Freitas aproveitou para contar algumas histórias para os meninos.
Ele contou que certa vez, ele estava vindo de um baile e já passava da meia- noite. A lua era minguante mas não tinha muita claridade por estar o tempo meio embaçado para chuva.. Num certo ponto da estrada, era obrigado a passar no meio de uma roça de milho. Ele parou, assuntou os barulhos e os movimentos, rezou, fez o sinal da cruz e entrou no milharal. Quando estava ainda embrenhado, num pequeno carreador, uma nuvem estranha cobriu a claridade da lua e tudo ficou mais escuro do que já estava. Um frio escorreu por sua espinha e parou novamente para assuntar os movimentos: só ouvia o “chuá chuá” do vento balançando as folhas dos pés de milho. Fez novamente o sinal da cruz e prosseguiu.
Depois de caminhar alguns poucos metros, uma luz muito forte cortou o céu e um barulho ensurdecedor fez tremer o chão que até então firmava as pernas dele. De repente, outra luz, apareceu em sua frente uma coisa muito grande que tinha os olhos que soltavam fogo. Era uma coisa muito feia. Aquela coisa parece que vinha por cima dele e abria a boca enorme para engoli-lo.
As suas pernas amoleceram, o coração disparou e lá se foi abaixo caindo feito manga madura. Ficou desacordado até de madrugada quando, de repente, começou a chover e a água fria o despertou do desmaio.
Levantou, marcou direção e pernas pra que te quero, foi parar só em casa . No outro dia ele ficou sabendo que outras pessoas também já tinham encontrado outras vezes o monstro naquele lugar
Ele contou, que nunca mais passou de noite naquele caminho. Dava volta até de léguas mas não arriscava encontrar aquele monstro de novo.
O Paulinho, e os outros meninos, nem piscavam enquanto ouvia a estória do Seu Zé de Freitas, ele contava com tanta emoção e veemência que parecia que estavam vendo a cena do monstro. Ficou até difícil de dormir naquela noite.
Ali perto do sítio dos meninos também tinha um lugar que era mal assombrado. Todo mundo sabia que naquela encruzilhada sempre acontecia alguma coisa de noite. Diziam que era um certo “Seu Benedito” que havia morrido por lá. Já havia muito tempo do acontecido. Diziam que ele ficou louco por causa de uma safadeza da família e se enforcou de vergonha num galho de árvore bem perto da saída da picada, donde ia dar para o sítio dos Vilela. O pessoal que passava por lá sempre apontava a cruz fincada numa clareira da mata, toda carcomida e cheia de restos de velas que os mais supersticiosos acendiam para a alma do morto.
Paulinho já tinha onze anos e cursava a primeira série do ginásio. A escola ficava na vila e o curso ginasial só existia à noite, pois no período diurno só funcionava como Grupo Escolar. Ele e seu irmão Marcilio vinham da roça todos os dias um pouco mais cedo que os outros e preparavam o velho cavalo e amigo Piano com arreios e rédeas, pegavam o embornal com os livros e cortavam todos os dias os quilômetros que separavam o sítio da escola.
O Piano era um cavalo baio que naquele tempo já havia sofrido o acidente com o casco: numa corrida desenfreada enquanto puxava um arado, cortou um ligamento de sua pata traseira, fazendo com que ele mancasse um pouco ao caminhar. O único serviço que ele podia fazer para a família era levar os meninos todos os dias para a escola.
Era de costume, todas as noites na volta da escola para casa, chegando perto daquela encruzilhada, os dois irmãos faziam o cavalo correr o mais que ele pudesse para passar rápido pelo lugar da cruz.
Naquela noite, era de lua cheia e eles vinham tranquilos cantando umas modas sertanejas, (era uma sexta-feira e a alegria de não terem aulas no outro dia se expandia em cantoria), e esqueceram-se da tal cruz.
Só se lembraram quando o Piano parou, ergueu o focinho para o alto e relinchou duas vezes. Um relincho assustador que mais parecia um grito de terror. Depois de um refugo meio frouxo (talvez para preservar os irmãos de uma queda), saltou de lado e ficou a bater as patas dianteiras no chão, como se estivesse pedindo ajuda.A estrada era de terra batida e as copas das árvores maiores fechavam no alto, fazendo muitas sombras quando as noites eram enluaradas, como acontecia naquela oportunidade.
O Paulinho, que estava sentado na garupa do cavalo, era o mais franzino e o mais medroso, foi o primeiro a ir ao chão, caiu feito uma melancia no primeiro momento do refugo. Depois do susto e a queda, olhou firme para a sua frente e em meio às sombras que se movimentavam viu um grande animal peludo que passou a se mexer e a balançar as grandes orelhas caídas sobre a cabeça. Um grito de desespero. O cavalo refugou novamente e derrubou também o Marcilio que veio se juntar a ele num dueto de gritaria. Não se sabe se foi pelos gritos ou por compaixão de Deus, uma luz surgiu atrás dos meninos e um berro de boi quebrou o ruído do eco dos gritos dos meninos que se ouvia ao longe.
Todos pararam .O cavalo que estava um pouco mais atrás foi o primeiro a reconhecer o Seu Pedro Vilela, e os meninos só o identificaram quando ele levantou o lampião que trazia e falou com a sua característica voz calma e mansa:

- Carma meninos, justamente, foi só o boi Tornado que resorveu disgarrá da manada e pulô a cerca do sítio. Eu já vô tocá ele de vorta!

A viagem continuou e a história foi contada muitas vezes pelos meninos e até pelo Seu Pedro Vilela que quando contava dava gargalhadas ao se lembrar da cara do Paulinho e do Marcilio na hora em que viu o boi.

- Justamente, eu fiquei foi cum muita dó dêis, mais foi uma história muito engraçada. Inté o cavalo que é tão manso num intendeu a situação. Eu nunca tinha avistado esse cavalo Piano rifugá desse jeito. Deve de ter pensado que era memo a assombração do Seu Binidito inforcado em forma de boi. Justamente foi munto engraçado!




HISTÓRIAS DO PEDRO MALAZARTES



Na casa do Seu Zé de Freitas não se ouvia só estórias de assombração. Ele também contava histórias interessantes como as histórias de malandragem do Pedro Malazartes. Este era um viajante solitário cheio de aventuras que visitava as cidades do interior, fazendo negócios de altas vantagens.
Naquela noite, a Dona Antonia, esposa do Seu Zé Batista, convidou os meninos a vir na sua casa, para participar de um terço para Santa Bárbara, um santa de sua devoção.
Foram todos para lá, menos o João, marido da Laura, que ficou olhando os “planetas” no céu, como ele sempre fazia em noite de céu claro.
O Seu Zé de Freitas, nunca foi muito católico, por isso ele juntou as crianças e alguns adultos na sua casa, que era ao lado da casa da Dona Antonia, e pôs-se a contar histórias.
A histórias que contava naquela noite, todas tinham como personagem principal o tal de Pedro Malazartes.
Numa das histórias ele contava que o tal moço estava viajando há muitos dias e parou para descansar debaixo de uma árvore frondosa na beira da estrada.
- Naquele tempo num tinha muita cundução pra viajá, não.- continuava o Zé de Freitas. - O povo andava era de cavalo ou intão diapé memo. E o Pedro já tava viajano pra mais de légua, e, aquela arve veio memo a caiar. E, ali perto da arve, tinha uma casa de tijolo, bonitinha, cercadinha de coquero e cum pé de rosa toda florida no quintar. Tinha assim, uma curtina toda amarela na janela e tinha lá drento uma muié trabaiando, ela tava fazeno cumida pro armoço. Divia de tê uns quarenta ano mais o meno, daí pra mais. Da onde o Pedro tava, dava pra vê quase tudo que acontecia lá drento da casa.

- O Pedro subiu em cima da árve oiô aquela cumida que a muié tava pondo em cima da mesa: tinha arroiz, frango cuzido e mandioca, seu estamo começô a roncá. Pegô emborná, tiro de dentro dele a mucuta de farinha, mais quando ele foi cumê, o estamo dêle ripunô. Ele sintia o chero da cumida da muié e ripunava a farinha da mucuta.- E aí dicidiu: - Eu vô lá pidi um prato de cumida prela. Ela num há de negá cumida prum viajante que nem eu!- E foi. Chegô perto da casa e a muié assim que avistô ele, foi logo gritano:

- Ô de fora, quem tá chegano aí?
- Sô o Pedro Malazarte, posso chegá mais perto da sinhora?- perguntô.
- Num pode não sinhô. O meu marido num tá em casa e num recebo home disconhecido quando tô sozinha.- falô a muié, e já ia fechano a janela, quando o Pedro gritô:
- Peraí, eu só quero uma pequena ajitória! É que eu tô cum munta fome, e quiria que a sinhora mi desse cum sua mão, um prato de cumida pra mim. É que já faiz é muitos dia que eu num como arroiz assim cheroso igual esse aí que a sinhora tem na mesa.
- Pois o sinhôr me discurpe, eu num posso recebê o sinhor. O meu marido deve de vortá antes do sinhor entrá, aí o sinhor pode vim nós faiz um prato de cumida pro sinhor cumê.- Falô a muié e fechô de vêiz a janela.
- Num é pussíve! Eu cum essa fome! Pois eu vô esperá esse home vortá! - pensô cum seus botão.

O Seu Zé de Freitas levantava, e fazia micagens e gestos que deixam todos muito interessados na história. Parou um pouco para dar umas pitadas no cigarro de palha.

- E aí Seu Zé, conta mais!- gritou um menino.
- Tá bão! Onde é que eu tava memo?
- Ah! Já sei. Intão o Pedro Malazarte vortô pra debaixo da árve e de lá ficou a observá o movimento pra vê a hora que o dono da casa ia chegá. Viu um moço assim novim chegá perto da casa, a muié oiô da janela, ele bateu na porta, a muié abriu e dexô ele entrá.
- Uai, num deve de sê o marido dela, tem idade pra sê um dos fio. Pensô. - Eu vô esperá mais.
- Num demoro mais que meia hora e o moço já saiu, banô a mão e foi imbora. E logo dispois, um outro moço chegô. Iguarzinho o otro: bateu na porta, entrô, ficou um tempim lá drento e logo foi simbora.
- E o Pedro Malazarte oiando tudo!
- Ué, fio dela num deve sê, sinão eles ficava. Si foi imbora deve de sê visitante,.pessoa cunhecida, ou então tem angú nesse caroço, eu sei que tem. Eu vô continuá esperano.- pensou. -Eu tenho paciência.
- E enquanto o Pedro esperava dibaixo da arve, um passarim grande, assim paricido cum urubu, chegô pra sentá no gaio, machuco o pé e caiu. O Pedro correu, pego o passarim e guardo no emborná e pensô:
- Dispois eu cuido desse passarim, agora eu tem que cuidá e do meu estamo.
- E o sór ainda ia se demorá pra entrá, quando foi chegano outro home na casa. Esse já tinha uma certa idade. A muié nem oiô da janela, ele foi chegano e entrano, sem batê nem nada.
- Ué? - pensou o Pedro. - Esse deve de sê o marido. Agora ela vai tê que me dá o prato de cumida!

E foi. Chegou perto da casa, bateu Parma e o home veio atendê.

- Tarde! Vamo chegá. Qué tomá um copo d'água? - Perguntô.
- Pois intão. O que eu quiria memo é um prato di cumida, si o sinhor pudê me arrumá!.- Falô o Pedro cum cara assim de esfomiado.
- Pois o sinhor chegô bem na hora, é que eu tô chegano da vila e fui compra umas coisa que fartava em casa, e a muié tá preparano a mesa. respondeu o home. - Entra pra cá. Vem se sirvi.
- O Pedro Malazarte entrô. Mais quando ele oiô a mesa, num tinha nada daquelas coisa gostosa que tinha visto a muié fazê. Só tinha era arroiz branco cum fejão e abobrinha refogada. Sintiu uma decepção grande. Maió decepção sintiu o seu estamo. Mais quando ele foi cumê, um cheiro de frango caipira cuzido vei do guarda-cumida. Ele levantô, chegô mais perto e o chero aumentô.

- O sinhor tá sinto arguma coisa? - perguntou o home.
- Sabe, é que drento aqui do meu imborná, eu tenho um fiote de urubu, e ele custuma adivinhá as coisa.- respondeu o Pedro colocando a cabeça do urubu pra fora do emborná e chegano o bico dele perto do ovido.
- Agora memo ele conversô cumigo e tá mi falano, que têm uma panela de frango cuzido, escundido drento do guarda-cumida aí do sinhor.
- Num pode sê, falô espantado o home. A muié num ia escondê esse frango di mim! Muié, vem cá, que história é essa que tem um frango cuzido iscondido no Guarda-cumida? Abre aí que eu quero vê se é verdade.
- A muié, assim meio que sem vontade, abriu divagarzim o guarda-cumida e tava lá, numa panela num cantim, cuberta cum pano,o frango cuzido que tanto cherava.
- Num falei pro sinhor! apontou o Pedro. - Ele mi disse mais...- Tentou continuar o Pedro.
- Mais que bunito passarim é esse que adivinha as coisa que a gente qué fazê de surpresa?.- interrompeu a muié num disispero só. - O sinhor num qué vendê ele pra nóis? O meu zé vai gostá muito de tê esse bicho aqui em casa, num é Zé? - falô, passano a mão na cabeça do urubu.
- Pois é, vamo primero cumê, dispois a gente cunversa de negócio. O cherim do frango ta muito bão.- Falô o Pedro pegano no prato, já estrupiado de fome.
- Dispois do armoço, que já passava de sê janta, o Pedro vortô a tocá no assunto do urubu:
- Pois, eu tô memo pricisano de dinhero, num sabe?. Se o sinhor mi pagá mir réis, o Passarim é do sinhor. -ofertô.
- O sinhor tá lôco. Nóis num pode gastá esse dinheirão num urubu, se o sinhor quizé, eu dô nele quinhento réis. É o que eu posso dá. Mais que isso eu num dô não.
- Intão, é que ele advinha muita coisa, e pode ajudá o sinhor dimais, pois ele me contô tamém que a muié do sinhor, hoje na hora do armoço...
- Nóis paga! Gritô a muié interrompeno a cunversa.- Num é Zé? Esse Passarim vai ajudá muito nóis aqui no sítio. Nóis paga! Cê já pensou Zé? Nóis pode ganhá dinheiro advinhano as coisa pros vizim. É só o sinhor ensiná como é que nóis cunversa cum ele.
- Pode dexá, ele fala iguarzim nóis. falô o Pedro. - Ele só num tá falano muito hoje porque ele tá com a perninha machucada, mais amanhã a sinhora vai vê só. Vai sê uma fofocaiada danada!
- Fecharo o negócio. O Pedro pegô o dinheiro e a estrada e sumiu no mundo, e a muié do home tá até hoje, tentano conversá com o urubu.- Terminou o Zé de Freitas com uma grande risada.
- E é verdade!!! - dizia na maior gargalhada. - O Pedro Malazarte só aprontava memo!

O terço terminou e todos foram para casa, mas na memória dos meninos, as histórias continuaram vivas, e, num certo seriado da televisão, um ator chamado Canarinho, encarnou a personagem do Pedro Malazartes com muita competência e fez com que o Paulinho relembrasse com saudades aquelas velhas histórias.
Maior ainda foi a emoção, quando num encontro de trabalho, o Paulinho pode abraçar o grande ator Aloisio Ferreira dos Santos,o Canarinho, e deixou imortalizado numa foto este grande momento.




A PARTEIRA DOS MENINOS



Era um dia especial. Naquele Sábado de aleluia o Aparecido havia planejado de matar o porco capado para suprir a gordura da dispensa que já estava no fim.
A gordura suína normalmente era a substituta do óleo de soja que os lavradores não podiam adquirir por seu alto custo. O armazenamento era feito normalmente em latas de vinte litros com tampa, dispostas em um girau dentro da dispensa, ao lado dos sacos de sal e açúcar.
Tudo preparado: a banca para cortar, a faca bem amolada, a bacia d'água para lavar, as palhas de milho para sapecar, o caldeirão para colocar os miúdos.
Foi uma grande mão de obra na ora de pegar o porco de quase oito arrobas no chiqueiro, transportá-lo e imobilizá-lo. Foi preciso a ajuda de todos da família, exceto dos dois pequenos que segundo o Aparecido só iriam atrapalhar.
O trabalho do abate normalmente era feito pelo Aparecido. Era de praxe, e até lendário, que os pequenos não ficassem perto no momento do sacrifício. Diziam que quando se tem dó do animal, ele demora mais para morrer. O porco é muito escandaloso,ele grita até o último suspiro o que nos faz ficar penoso
O sangue deveria ser aproveitado para fazer o chouriço, por isso na hora de sangrar o porco, alguém deverá colher com uma vasilha aquele líquido precioso.
Antes de tudo era preciso lavar o porco para tirar o excesso de barro. A água era jogada com um canecão, feito artesanalmente com lata de leite em pó vazia e uma alça fixada, em formato de “meio coração” rebitada com alumínio.
Os dois filhos menores, o Marcilio e o Paulinho, não saiam de perto daquela cena. Cada detalhe era absorvido, cada ação era perguntada: Como é isso? Por que aquilo? Eram poucas as respostas, mas as perguntas eram insistentes. Até que não suportaram mais.

- Vai pra lá os cêis dois. Dizia a Dona Erondina. Vai arranjá um jeito de brincá pra lá. Daqui a pôco o seu pai vai matá o porco e nóis num qué que oceis fica aqui pra tê dó dele, sinão ele num morre direito. Vamo, vamo, vai se aquietá num canto, vai...- Ah mamãe, dexa nóis ficá aqui. Nóis num vai tê dó do porco não. Nóis quiria vê tirá a barrigada dele.
- Num ouviu sua mãe falano? Dizia o Aparecido com a voz autoritária e botava ordem. Vai discascá mais milho pra dá pros outro porco mais tarde, pode ir.

Com carinha de tristeza seguiram os dois para o paiol de milho. Não adiantava insistir com o pai. Ele era de uma só palavra. Menos mal, pois de lá dava pra acompanhar todos os movimentos da matança do porco.
Depois de lavado o porco, Aparecido faz o sangramento. Com um furo fatal, usando uma faca bem afiada, bem embaixo da pata dianteira esquerda do porco.
O sofrimento foi pequeno, mas de dentro do paiol os meninos sofreram junto. Fecharam os olhos para não ver a hora de matar. Depois ficaram a dizer baixinho:

- Coitado dele. A gente dava milho pra ele todo dia. Agora só vai ficá os outro.
- Melhor pra nóis! - dizia o Marcilio.-É menos espiga pra discascá.

A rotina continuou. Queimando as palhas de milho sobre o animal já morto, sapecou-se todo o pelo que cobria sua pele e com a ajuda de facas preparadas, foram raspados os pelos, deixando a pele muito lisa com tons avermelhados. As orelhas eram mais difíceis, precisava caprichar bem. Um pouco de água quente também ajudava neste trabalho amolecendo os pelos internos.
A etapa final veio a seguir. Abriu-se o porco pela barriga, tendo o cuidado de não cortar os intestinos.

- Cuidado pra não cortar o fel. - recomendava o Aparecido pra Dona Erondina. Este capado tem muita gurdura. Deve de dá umas trêis lata. Se num dé mais...
- Num sei não. Aquele que nóis matamo na outra veis, ocê falô a mema coisa e só deu duas e meia. Tinha era muita carne.
- Esse aqui tamem tá bão. Óia só o pernil dele! Uma beleza! - elogiou a Erondina.

Separou os rins, os pulmões, o coração. Metade para um lado lá, metade para o outro lado. Muita água limpa para lavar.
A barrigada tinha destino certo. Era levada até o córrego para limpar e separar todas as tripas.Este trabalho era da Mirnadel ou do Rubens. As tripas eram a matéria prima para a confecção da linguiça caseira que fazia parte do desjejum da família.
Depois de separar em duas bandas, o trabalho era dividido. Cada um trabalhava numa parte para separar o toucinho da carne. Todo o toucinho seria depois cortado em pequenos pedaços e frito para se apurar a gordura, que substituia o óleo no preparo de quase todos os pratos da alimentação caseira.

- Zilda, pega umas vazia pra nóis colocá as carne proceis levá pros vizim. Esse aqui é da cumade Laura; põe naquele carderão de arça do Paulinho levá na escola. Fala pra Nair te ajudá. Cadê os minino? Fala pra eles vim pra levá um pedaço tamem lá no Seu Zé Batista. Da outra vêis ele troxe pra nóis.
-Eu levo pra Tia Maria - falou a Nair dando pulinhos. Posso mamãe?
-Pode levá. Mais vorta logo. Num vai ficar de fuxico com as mininas, que temo mais serviço aqui pro cêis.

Aparecido trabalhava em silêncio. O seu pensamento viajava por outros lados enquanto passeava com a faca separando as partes do porco. Ele lembrava que aquela carne era a fartura da família. O Porco gordo significava para ele a independência, a mistura para muitos meses. A carne de vaca era pouco consumida no sítio; só era trazida quando viajava a negócios para Jales. Muitas vezes, comprava o jabá no armazém do Sr. Osvaldo Calgari. Fora a carne de porco, a segunda mistura era o frango. Este sim era também fartura no terreiro, pois a Dona Erondina cuidava de suas galinhas como se fosse da família.
Com os frangos que produzia, além de servir no cardápio de rotina, também servia nas trocas com Seu Altamiro, um “oveiro” que viajava pelas redondezas trocando aviamentos e pequenas peças por frangos e ovos.
Aparecido, entretido no trabalho, se lembrava dos seus vinte e oito anos, quando ainda morava no sitio do Seu Zeíco, no Córrego do Arrancado, às vésperas de um feriado como aquele
Naquele dia, saíra para comprar um pedaço de bacalhau na vila, por causa da semana santa. Estava começando o mês de abril. Naquela semana o povo católico normalmente fazia jejum por causa do fim da quaresma.
O Aparecido não era muito de comemorar este período, nem dia santo, pois já nesta época seguia um pouco a doutrina Kardecista como também o seu irmão Paulo e a Laura.Mas como era o costume de todos e a única oportunidade que tinha para comer o tal peixe, lá foi em busca dele.
Era quinta-feira santa e o dia já estava escurecendo quando ele chegou em casa. Nem chegou a descer do cavalo e a Mirnadel veio correndo avisar:

- Papai, a mamãe está passando mal. Nóis já chamemo a Tia Laura.

A Erondina estava grávida e já nos dias de dar a luz. Era o sexto filho do casal e talvez devesse ser o último, se Deus quisesse, como diria.

- Cumpade Parecido, o sinhor tem que chamá a Dona Ana. A cumade Ronda já tá bem adiantada. Num vai dá pra esperá muito não.- Dizia a Laura preocupada com as contrações da comadre e amiga.
- Tá bão. A sinhora cuida dela que eu nem vô desarriá a égua.

E lá se foi a galope. Na jibeira ainda levava o pacote com o bacalhau que comprara para comer no almoço da sexta-feira santa. A casa da Dona Ana do Seu Geraldo Inácio não ficava muito longe. Foi só chegar e contar o acontecido que ela se prontificou a tomar as providências.

- Espera só um pôco, Aparecido, que vô só botá uma outra rôpa e pegá umas traia e nóis já vai.

Dona Ana era a parteira mais requisitada da região. Além disso, era muito respeitada pela família dos meninos que outrora já havia morado no sitio dela como colono. Quase todas as crianças que nasciam por lá, nasciam por sua mão. Era muito competente e solidária.

O parto foi uma beleza, o menino nasceu com muita saúde e foi a alegria naquele feriado.

- A Erondina não pode fazer o bacalhau que o Aparecido comprara, pois tinha que fazer a dieta que recomendara a Dona Ana. Deveria cumprir os 40 dias sem excessos de comida nem exageros nos esforços físicos. Neste período, os vizinhos sempre se colocavam à disposição para lavar as roupas mais pesadas e ajudar nos afazeres da casa. As meninas Mirnadel e Zilda já ajudavam bastante, mas não sabiam fazer todas as atividades ainda. Elas cuidavam do Marcilio, outro filho pequeno, que ainda não completara dois anos.

- Ele vai se chamar Ivo. Eu vô registrá ele na semana que vem lá em Dorcinopi - falou com orgulho o Aparecido depois do almoço, para o seu irmão Paulo que viera visitá-lo.
- O sinhor tirô a minha idéia. Eu tava pensano em colocá esse nome no filho que a Maria tá esperano. Mas se o sinhor já vai colocá tudo bem, eu arranjo outro nome pro meu.

O nome escolhido não deu certo. No dia em o Aparecido fora registrar o recém-nascido, o escrevente do cartório não aceitou o registro do menino com o nome de Ivo, alegando que o nome não existia e deveria ser encontrado outro nome. Aparecido não entendeu nada.

- E agora, que outro nome vou colocar?- pensava.

Voltou a insistir com o homem do cartório: nada.

- Intão faiz o seguinte: põe o nome do meu irmão aí, eu tô achano que ele tamém num vai consegui colocá esse nome no filho dele, assim eu faço uma homenage pra ele.
- Como é o nome do seu irmão? perguntou o escrevente.
- É Paulo.

Os meninos chegaram do paiol para levar a carne na casa do Seu Zé Batista . Ficaram observando o pai a trabalhar por alguns instantes.
Aparecido parou um pouco com seu trabalho, olhou bem para os dois e disse com voz autoritária:

- Ceis toma cuidado com o cachorro do Zé de Freitas, ele custuma avançá nas crianças. Vorta logo!
- Tá bão papai. Nóis vamo vortá logo. Vem Paulinho.
- Bença mamãe, bença papai.
- Deus te abençôe.- Responderam os dois em coro.

Foi o último serviço de parteira prestado para aquela família, mas a Dona Ana continuou por muito tempo, a trabalhar, sempre solidária, e prestativa.





FESTA DE SANTOS REIS



O amor pelas coisas da terra e pelas tradições sempre fez parte da vida do Aparecido. Mesmo depois de ter se envolvido na doutrina Kardecista, ele participava das festas e quermesses da comunidade católica, cujo objetivo era manter a igreja da vila.
Certo ano, foi colhido no sítio uma vara de cana-de-açúcar com mais de cinco metros de comprimento, e o Aparecido doou para a o leilão da Festa Junina da comunidade. Foi um sucesso.

Nas recordações daquele tempo da vida sertaneja, alguns fatos marcaram a vida folclórica da família. Um deles era a recepção da bandeira da Folia de Reis.
A Festa de Reis representa a caminhada dos três Reis Magos em busca da Estrela Guia para levar os presentes ao Cristo recém-nascido.
A Folia de Reis é uma festa religiosa de origem portuguesa, que chegou ao Brasil no século XVIII. Em Portugal, em meados do século XVII, tinha como principal finalidade divertir o povo, enquanto aqui no Brasil passou a ter um caráter mais religioso do que de diversão.No período de 24 de dezembro, véspera de Natal, a 6 de janeiro, Dia de Reis, um grupo de cantadores e instrumentistas percorre a cidade entoando versos relativos à visita dos reis magos ao Menino Jesus. Passam de porta em porta em busca de oferendas, que podem variar de um prato de comida a uma simples xícara de café.
A Folia de Reis, herdada dos colonizadores portugueses e desenvolvida aqui com características próprias, é manifestação de rara beleza. Os preciosos versos são preservados de geração em geração por tradição oral.
Naquele ano, Aparecido ficou sabendo da vinda da Folia de Reis para a sua casa e preparou uma surpresa. Os foliões foram chegando e pedindo licença.
A Folia de Reis normalmente é formada por pessoas simples da região que são devotas ou que por algum motivo fizeram promessas de participar da homenagem aos Santos Reis.
O mestre, também chamado de alferes, é considerado a pessoa mais importante da Folia, depois do Rei, pois é ele quem puxa a cantoria e faz os versos trovados.
Nas entrelinhas dos versos, o mestre tem vários momentos: o primeiro deles é pedir a permissão para entrar a casa; em seguida agradece as doações recebidas; por último faz a despedida; depois, pede para receber a bandeira e abençoa as pessoas da casa.Depois que o mestre canta os versos, o contramestre faz o coro e dá a entonação junto com os foliões, normalmente em número de seis, tradicionalmente chamados “fidalgos”, que são os instrumentistas, isto é, tocadores de violão, viola, cavaquinho, zabumba, rebeca e pandeiro. Todos são os donos dos seus próprios instrumentos.
Acompanham os foliões, dois personagens vestidos com roupas coloridas e com uma máscara monstruosa em forma de cone, chamados de “palhaços” ou tradicionalmente “Mordomos” .Esses personagens fazem o papel do inimigo dos reis, isto é, aqueles que perseguem a Jesus Menino, mandados pelo rei Herodes para matá-Lo. São os palhaços normalmente quem pedem as contribuições para o dono da casa para a realização da festa na casa do festeiro.
É de um colorido muito bonito. Os instrumentos são enfeitados com fitas de cores vivas como o verde, o vermelho e o rosa, seguindo o mesmo modelo das vestimentas, dos chapéus de palha e das baquetas das zabumbas.
A Folia de Reis vem chegando à casa do Aparecido e este já está na porta da sala para recebê-los. Na frente vem o Rei, com seu porte marcial conduzindo a bandeira, o símbolo que representa toda a fé daqueles devotos e todo o motivo daquela peregrinação.
E o Mestre puxa a cantoria de pedido de licença:

“Ó di casa, ó di fora, Qui hora tão excelente
É o glorioso santo Reis, Que em vem do oriente
Ó de casa, ó de casa, Alegra esse moradô
Que o glorioso santo Reis , Na sua porta chegô”

E o contramestre e os foliões emendam: “Na sua porta chegô ,
ai, ai, ai , ai. Na sua porta chegô , ai , ai
. Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!”

“Sôr dono da casa, Vem abri as portaria
Recebê santo Reis, Com sua nobre folia
Sôr dono da casa, Alevanta e acende a luz
Vem a ver santo Reis , O retrato de Jesus”

“O retrato de Jesus, ai ai ai ai. O retrato de Jesus
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!”

“Paremo na sua porta , com oro na balança
Aqui tamo a sua espera, da sua determinança
Deus te sarve casa nobre , nos seus posto tão honrado
Ande mora gente nobre, que de Deus é visitado”
“Que de Deus é visitado, ai ai ai ai. Que de Deus é visitado , ai
ahhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!”

“Deus o sarve a luz do dia, Deus o sarve a claridade
Deus o sarve as três pessoa, Da Santíssima Trindade
Deus o sarve as três pessoa, Com a sua santidade
É três pessoa divina, Aonde nasce a divindade”

“Aonde nasce a divindade, ai ai ai ai. Aonde nasce a divindade, ai
ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!”

“O sinal da Santa Cruz, É principio de oração
É o princípio desse canto, Desta rica invocação
Deus te sarve oratóro, É coluna que Deus fez
Hoje tá visitado, Do glorioso santo Reis”
“Do glorioso Santo Reis, ai ai ai ai. Do glorioso Santo Reis , ai
ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!

Deus te sarve oratóro, cum todo seus ornamento
Deus te sarve as estampinha, e as image qu'estão dentro
Deus te sarve as image, as pequena e as maió
Numa rica divindade, se incerra em uma só

Se incerra em uma só, ai ai ai ai. E incerra em uma só ai,
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!

Sôr dono da casa, alegra seu coração
Arreceba santo Reis, com todo seus folião
Santo Reis desceu do céu, cortano vento nas asa
Vem pedi um agasaio, para o dono desta casa

Para o dono desta casa,ai ai ai ai. para o dono desta casa ai,
Ahhhhhhhhhhhhhhhh!!!

Santo Reis veio voano, nos are fez um remanso
Procurô sua morada, pra fazê o seu descanso
Sôr dono da casa, muito alegre deve está
Do glorioso santo Reis, hoje vei lhe avisitá

“Hoje vem lhe visitá, ai ai ai ai. Hoje vem lhe visitá, ai
Ahhhhhhhhhhhhhhhhh!!!

Concluímo este canto, fazeno o siná da cruiz
Pade, Fio, Esprito Santo, para sempre, amém Jesuis.

Para sempre amém Jesuis, ai ai ai ai.
Para sempre amém Jesuis, ai , ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!”

Então nesta hora o mestre solicita a licença:

- Oi patrão, aceita a Bandeira de Santo Reis em sua casa? - grita de
longe o mestre.
- Aceito! - responde o Aparecido.- Vamo chegá que a casa é nossa.

E então a cantoria segue seu rumo. Agora cantam para pedir a doação:

“Aqui está santo Reis, já tão tarde foras dóra
Procurou vossa morada, pedino a sua ismola”.
Santo Reis e Nossa Senhora, foi passeá em Belém
São José pediu esmola , Santo Reis pede também”

E o contramestre emenda com os foliões:

“Santo Reis pede também, ai ai ai ai. Santo Reis pede também , ai
Ahhhhhhhhhhhhh!!!”

O mestre continua:

“A esmola que vóis dá, nois viemo arrecebê
O glorioso santo Reis, é quem vai agradecê”
Santo Reis pede esmola, não é ouro nem dinhêro
Ele pede um agitoru, um alimento pros festero


Um alimento pros festero, ai ai ai ai.
Um alimento pros festero, ai , ahhhhhhhhhhhhhhh!!!”

Aparecido segura a bandeira na sala, em frente da porta da cozinha. Um dos palhaços que pula e dança ao ritmo da caixa e da rebeca, chega perto do dele e pergunta:

- Aí patrão, o que tem pra dá pros paiaço hoje. Tem semente de galinha? Uns garrote na pastage, uns capado nos chiquero?
- Tem uma cobra pra dá pra voceis. Ela é grande e bonita. - responde o Aparecido com um gesto de gozação.

Na linguagem dos palhaços de Folia de Reis, semente de galinha é o ovo e a cobra significa lingüiça, coisas que normalmente eram doadas para os foliões pelo dono da casa.

- Nóis então vamo buscá. Onde é que tá. E foi entrando cozinha afora.
- Num tá aí na cozinha não. Espera que eu vô buscá pr'oceis. - O Aparecido passou a bandeira para um dos meninos e foi buscá a “cobra” para o palhaço. Saíram os dois palhaços atrás dele que se embrenhou pela dispensa afora. Uma caixa, cuidadosamente fechada estava disposta em cima da bancada de aroeira, perto do saco de sal.
- Tá aqui a cobra. Vamo lá na sala que eu vou te mostrar.- O palhaço saiu pulando e dançando até a sala e lá recebeu das mãos do Aparecido a caixa ao qual estava a “cobra” que ansiava a todos.

Quando a caixa foi aberta, lá dentro havia mesmo uma cobra. Uma cobra de verdade. Foi um pânico geral.
Mas depois tudo se acalmou, pois a cobra já estava morta, e tudo virou em gargalhada. Era comum este tipo de brincadeira aos palhaços. Depois o Aparecido buscou vários “gomos” de lingüiça e entregou aos palhaços. E o mestre agradeceu:

“- Ai, Santo Reis vos agradece, ai, ai. Ai, pela oferta que nos dero. ai, ai, ai.
E que seja abençoado ai, ai. E que seja abençoado ai, ai.Ai.
E que seja abençoado ai, ai. Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!”

Muitas pessoas vieram para ver a apresentação da Folia de Reis na casa do Aparecido. As crianças eram as mais entusiasmadas com a participação dos palhaços.
Para animar mais a apresentação, alguns palhaços costumam fazer apresentações especiais, trazidas de outras tradições folclóricas como a dança do facão, que normalmente são apresentadas pelas “congadas” mineiras e a chula, que vem das origens gaúchas e nordestinas.
Depois de todas as cantorias de despedida, foram embora todos os foliões. Mas antes a despedida tradicional:

“- Santo Reis já si despede, agradece a hospedage,

Segue em busca da estrela, vai buscá otras parage.
Encontrá menino Deus, na eterna manjedora
Com José o seu pai santo, e Maria a genitora, ai ai:

- E Maria a genitora, ai ai ai ai. A Maria a genitora
, ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!”

E se foram cantando.E os meninos ficaram a dar tchau até todos desaparecerem ao longe.

A Folia de Reis ainda tinha muito que trabalhar. Durante as andanças, as prendas e as doações conquistadas eram depois coletadas e levadas para a casa do festeiro, que se transformava em alimento para os convidados da festa.
O festeiro daquele ano era o Sr. Geraldo Inácio que ofereceu em sua propriedade uma grande festa, a maior de todos os anos. Mataram pelo menos cinco garrotes, quarenta frangos, vários leitões e leitoas, todos recebidos em doações ou “esmolas” como é tradição ser chamado. Neste dia todos foram convidados para comer e beber à vontade.
A família dos meninos também estava na festa. Todos ficaram juntos.
O Paulo e o Aparecido aproveitaram para contar algumas histórias da família e a relembrar outras festas de que participaram na juventude.
- Aquilo é que era festança da boa, héim cumpade. Todo mundo dançano a noite intera só com a batida da viola. - lembrava o Aparecido. - Hoje em dia c'uesse tar de nhê nhê nhê, nem as sanfona vai sobrevivê. Os moço só pensa memo é nas guitarra. É capaiz da viola até sumí, num é não cumpade?
- É, num sei não!- concordava o Paulo. Mais ainda tem muito violero bão por aí...- e foi saindo para pegar mais comida para o prato.

Todos os anos a Festa de Reis mudava de endereço, mas aquela festa na fazenda do Seu Geraldo Inácio ficou na memória de todos, pela recepção e fartura de alegria.
E os Foliões de Santos Reis continuaram a festa até altas horas. Os meninos tiveram que ir embora, mas levaram na lembrança, a amizade e a cultura de um povo, e carregavam no coração a motivação e a fé, para tocar a vida, na simplicidade e na solidariedade em uma religião, que tem um Deus chamado paz.





A DANÇA DO CATIRA



Durante a Festa de Reis na casa do Seu Geraldo Inácio, o Aparecido encontrou com o Seu Américo, mais conhecido como “Seu Amerquinho”, que o chamou num canto do terreiro e fez uma proposta:

- Seu Parecido, os meus minino e o Bartazar tão quereno montá um grupo de catira aqui em Dorcinópi. Eu tava pensano se os seus minino tamém num participa. Eu sei que ocê gosta desse negócio de apresentação.
- Gostá eu gosto, Seu Amerquim, mas é preciso ver se os minino também qué, num é verdade? Onde ocê tá pensano de fazê os ensaio?- perguntava já quase concordando com a idéia.
- Pois intão, Seu parecido. Pode sê lá em casa, ou na casa do sinhor...
- A gente precisa tamém é de arranjá um violero bão pra acompanhá nóis. Num pode sê quarqué um, num é? Os violero tem que conhecê as batidas: cateretê, pagode e chula. - condicionava.
- Eu vô conversá com o Rube e vê se ele se interessa. Continuou. - Se enteressá prele, leva tamém os dois mais piqueno junto cum ele. - prometeu o Aparecido já mostrando o intusiamo pela idéia.
- Intão ta cumbinado. Um dia desse eu levo os meu minino lá na tua casa pra nóis insaiá e vê se os seus minino teu se interessa. - dizia o Seu Amerquinho, já se afastando para ir embora.- Se dé certo vai sê muito bão. Eles pode até se apresentá nas radio. - sonhava.
- Num sei não. Mais nós vamo vê. - O Aparecido não acreditou muito nesta coisa de “rádio”.

Depois que a proposta ficou feita, alguns meses depois já estavam ensaiando. Uma dupla de violeiro chamada de “Zé da Urna e Mundarim” se interessou pelo grupo e começou a trabalhar juntos. Chamaram o grupo de “CATIREIROS MIRINS DE DOLCINÓPOLIS”.
Essa dança típica era muito apreciada pelos sertanejos da região. O Catira era também conhecido como cateretê. É uma dança de origem indígena e considerada “genuinamente brasileira”. É uma espécie de sapateado brasileiro, executado com bate-pé ao som de palmas e violas. Pode ser dançado só por homens ou só por mulheres. Conhecido e praticado no interior do Brasil, o cateretê é executado no Nordeste e nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Goiás.
A primeira apresentação do grupo foi na casa de um dos violeiros. A casa dele ficava na estrada de Populina, do lado direito perto da Venda da Encruzilhada. Era uma festa de São João e tinha muita gente. A apresentação aconteceu logo depois do pessoal rezar o tradicional terço e levantar o mastro dos três Santos.
O Zé da urna bateu a viola e cantou:

“Todo mundo me prigunta, porque eu num gosto de trabaiá.
Trabaiá eu num trabaio, dinhero eu tenho pra mim gastá.
Num é da conta de ninguém, procura dinhero comigo tem,
dexa as minina mi querê bem.”

E os meninos sapatearam:

- Tum, tum, tum. Tum Tum
E batiam palmas:
- Plá, plá, plá. Plá, plá

“ Amunta morena, na garupa do burrão, se o burro pula eu acho bão.Se o burro pegá pulá, eu faço pará na espora.Se meu santo me ajudá, eu levo a morena embora.

Lá em casa passô um bicho, o povo disse que é gavião, pegô uma porca , pegô um leitão.Pegô um pinto e pegô um galo e deu treis tombo no meu cavalo.

Tomara que o mato seca só pra vê o que a cobra come. Toda cobra tá sumino, só as muié que num some.Muié tem demais no mundo. Tem sete pra cada home.”

“Meu cavalo e minha muié, caíro num poço fundo. Meu cavalo eu tirei, sarvei ele num segundo. Meu cavalo é um colosso, a muié deixei no poço. Muié tem demais no mundo.

Me chamaro eu de minero, dessa veis eu achei bão
Eu não durmo de botina pra não apertá o dedão
Minero num, perde o trem, num fica na estação. No cabo do trinta e oito, não perde revolução.”

E continuou o recortado:

“- Morena vamo joga o jogo da doradinha. Se eu perde você me ganha, Se eu ganhá você é minha.
Eu tenho posto arreparo, no morde do teu vistido, é curto adiante e atrais cumprido. É moda mata-rapaiz, curto adiante cumprido atrais

Eu e a minha muié, fizemo a combinação: eu vô no pagode ela não vai não. Neste sábado eu fui e ela ficô, sábado que vem ela fica e eu vô.

Oi parma parmeiro Parma, parma, parmeiro e parmito.
Oi parma parmeiro Parma, parma, parmeiro e parmito.
Das danças que eu apreceio, o nosso catira é o mais bonito
Das danças que eu apreceio, o nosso catira é o mais bonito

Quatro coisa neste mundo, que meu coração tormenta:
Muleque chorão, casa goterenta, cavalo trotão, muié ciementa.
Mas pra tudo nóis dá jeito:Muleque chorão apanha, Cavalo trotão breganha. A casa a gente reteia, Muié ciumenta dorme na peia.

O home pra ser home, quatro coisa há de sabê:
Jogá e tocá viola, jogá truco e sabê lê.
Treis coisa eu aprendi, uma num pude aprendê
Jogo bola, jogo truco, toco viola e num sei lê.”

Foram muito aplaudidos. Um homem que se dizia entendido, prometeu levá-los para apresentar na Rádio Cultura de Jales.
A festa só terminou muito tarde com muito quentão e chiboca pra todo mundo. (Chiboca é uma espécie de caipirinha, preparada com cachaça , limão vinagre e muito açúcar. Algumas vezes as mulheres colocavam água para ficar mais fraca).
Daquela data em diante o grupo se organizou. Foi feito um bonito uniforme com camisa de seda amarela e lenço azul para o pescoço e um chapéu de feltro. Eram seis participantes ao todo. Alem do Rubens, do Marcilio e do Paulinho, participavam os dois filhos do Seu Amerquinho e o Baltazar.
Depois de muitos ensaios, fizeram também uma apresentação em Dolcinópolis, num palco montado perto do Bazar do Elias. Era a maior alegria do Aparecido ver os seus meninos se apresentando. Ele dava o maior incentivo.
O momento de maior fama para aqueles meninos foi o dia em que foram chamados a se apresentar na Rádio Cultura de Jales. De muitos ensaios e de muita ansiedade foram os dias em que se passaram entre o convite e a apresentação. O medo e a timidez de todos era o maior obstáculo a vencer.
Os violeiros, Zé da Urna e Mandarim, eram os motivadores da desinibição e do trabalho de aperfeiçoamento do grupo, junto com o Seu Amerquinho, é claro.
Chegou o grande dia. Só puderam ir os catireiros, os violeiros e o Seu Amerquinho, pois, naquele tempo era difícil o dinheiro para a viagem e não tinha nenhum patrocinador. A torcida ficou em casa, de ouvidos pregados nos rádios.
Era um programa sertanejo de um locutor famoso o qual incentivava a apresentação de duplas sertanejas locais que estavam começando e de grupos folclóricos como os meninos do Aparecido e do Seu Amerquinho.
Os meninos estavam todos prontos, os violeiros a postos, o Seu Amerquinho à frente de todos esperando o anúncio do locutor: O coração de todos estavam batendo fora do compasso. O Paulinho até suava frio. O menorzinho de todos, ele era o último da fila. De vez em quando ensaiava na sua cabeça as batidas das palmas que iria fazer:

- Plá plá plá, plá, plá, plá.

De repente, depois de um comercial qualquer que o locutor estava fazendo, ele chamou:

- Ovintes desta querida Rádio Cultura de Jales, neste momento, temos a satisfação de apresentá pra vocêis, os Catireiro Mirim de Dolcinópolis!! !”

E subiram no palco de apresentação.

- Seu Amerquim, vem aqui no microfone e apresenta os mininos pra nóis..- chamou o locutor.

E o Seu Amerquinho pegou no microfone, de uma forma meio esquisita e disse, com uma voz meio que sufocada de emoção e meio gritada de euforia:

- Aos ovinte dessa rádia, o nosso acordial bom dia do Amerquim.- e continuou. - Quero apresentá pra voceis, primeramente a dupla de violeiro que vai acompanhá nóis: Zé da Urna e Munndarim.
- Para os ovinte da Rádia Curtura, o bom dia do Zé da Urna!
- E do Mundarim.

E o Seu Amerquinho continuou:

- E agora, os Catirero Mirim de Dorcinópi.
- Taqui o bom dia do Rube.
- Taqui o bom dia do Marcilio.

E assim todos “mandaram” o seu bom dia através do microfone da Rádio Cultura.
E o Zé da Urna, que era o mais desinibido do grupo tomou conta do microfone e mandou:

- Pra iniciá a nossa apresentação aqui a Rádio, nóis vai fazê a dança tradicional e no final nóis vamos dançá o chula.

E começaram. No inicio os violeiros cantaram o que se chama de “cabeçalho”, (saudação que se faz aos violeiros), entoando a mesma melodia da moda ao som do palmeado e do sapateado.
Os meninos catireiros e os violeiros formaram uma grande roda, sapateando e palmeando, em círculo.
Quando a roda se completou, retornaram também em forma de círculo, com a mesma coreografia. Quando chegaram todos, cada um de em seu lugar, os violeiros iniciaram de novo a moda Neste momento os violeiros começaram rasquear as violas, e aí começaram o grande recortado.

“Vira pra cá, vira pra lá, vira direito, vira aos avesso. Me dá um abraço que eu tô com pressa.
Passarim que canta triste é o sabiá, sentado no pé de angá. Na beira do ribeirão, não canta triste assim não, que eu sofro do coração
Eu sô um passarim, eu sô um assanhaço, eu quero fazê meu ninho, se você dexá eu faço. Encostado no teu peito, bem pertinho do teu braço, se você dexá eu faço.”

Depois da tradicional apresentação da Catira, teve a apresentação individual na dança do “chula”. Cada um quis fazer mais bonito que o outro. O Paulinho mostrou serviço, ao som da viola, trabalhou mãos e pernas arrancando dos ritmos uma coreografia que arrancou as palmas da platéia presente.
Ao final, caminho de volta para casa. Alguns comentários de erros, outros de acertos. Mas o importante é que todos comentaram a apresentação. Foi o maior sucesso. Os meninos do Aparecido, Paulinho e Marcilio foram os mais comentados pelos seus tamanhos e idades. Foi um dia de fama para todos.
A formação do grupo durou pouco. Infelizmente não houve oportunidade para uma Segunda apresentação em rádio. A separação de alguns e a mudança de outros causaram a dissolução do grupo.
Na lembrança dos meninos, ficou o momento de fama, e no guarda-roupa, os uniformes guardados num canto a espera de um olhar de saudade.




A PANHA DO ALGODÃO



Era de madrugada, o quarto ainda estava escuro quando a luz de uma lamparina entrou no quarto dos meninos e caminhou até a cama do Paulinho.
Era Dona Erondina, que se aproximou da cama em que o menino dormia e falou ao seu ouvido:

- Acorda Paulinho, as menina já levantaro. Cê num vai panhá argudão com as menina tamém?
- É lá na roça do Seu Zé Carlo? perguntou com voz sonolenta. - Se for lá eu vô.
- Intão pode levantá e lavá a cara. Eu vô prepara um carderão de cumida procê. As minina já tão quase pronta.

A “panha” do algodão era feita pelos meninos aos domingos ou feriados, que eram os dias de descanso na roça, e o dinheiro ganho neste trabalho ficava para suas compras especiais. O Paulinho queria ir trabalhar naquele domingo para guardar o dinheiro para comprar o presente para o dia das mães no bazar do Elias. Era um gatinho de louça muito bonito que há tempo era observado.
Paulinho colocou sua única calça de brim mescla, uma camisa de manga comprida e um chapéu de abas largas, um caldeirão de comida para o almoço que a mãe havia preparado e lá se foi em busca da roça de algodão.
A roça do Zé Carlos não ficava longe do sítio. Vinte minutos de caminhada eram suficientes para chegar até o rancho onde ficava a balançam e os fardos.
A roça de algodão estava muito bonita, cada planta ostentava pelo menos vinte maças abertas, o que consistia numa boa produtividade para as terras da região. O branco das maçãs abertas parecia um lencol de plumas que deitava sobre a terra verde rodeada de pastos e plantações de milho.
A roça não era grande, era proporcional ao tamanho do sítio, que diversificava entre a criação de gado leiteiro e as culturas de café, milho, arroz, feijão e algodão. Os pés de algodão não eram altos, e serviam certinho para o trabalho do Paulinho, que em algumas ocasiões até sumia no meio das ruas das plantações, por causa da sua pequena estatura.
Um pequeno balaio, feito com taquara ou bambu, e as mãos eram as ferramentas de trabalho. As mãos tinham que ser rápidas para conseguir ganhar o dia com sucesso. A cada balaio cheio o caminho até o rancho para ser despejado num fardo e, assim, no final do dia tudo era pesado e pago ao catador. A unidade de medida usada para os cálculos era a arroba, isto é, quinze quilos. Um menino como o Paulinho conseguia apanhar no máximo três arrobas de algodão por dia, quando trabalhado com seriamente.
Algumas ervas daninhas atrapalhavam o movimento por entre as plantas. Tinha um tal de carrapicho que se prendia nas roupas e chegava até a machucar a pele, quando o tecido era mais fino como era o da camisa, por exemplo. E nos momentos de descanso, os catadores ficavam a retirá-los com paciência. Na roça do Seu Zé Carlos também tinha bastante picão, uma planta que tinha como semente feixes de esporos pretos que se prendiam em blocos nas roupa e que dava trabalho para tirar.
Paulinho não tinha um fardo só para ele. A sua produção estava sendo colocada junto com o fardo da Zilda. No final, seria calculado o seu trabalho e o dinheiro seria dividido.
Já eram mais ou menos nove horas da manhã, hora do almoço, e todos se juntaram na sombra de uma mangueira no carreador da roça. Cada um no seu canto, todos almoçavam em silêncio. No caldeirão do Paulinho havia arroz com feijão, um pedaço de carne de porco e um ovo frito. Ainda estava meio morno e a fome transformava aquele prato no cardápio mais saboroso do mundo.
Todos, inclusive o Paulinho, tinham uma preocupação de não comer toda a comida, pois na hora da merenda tinha que ter uma sobra para completar o desjejum. Para ele não havia problema, ele havia reservado uma pequena melancia que enontrara no meio da roça de algodão. As melancias nasciam entre as plantas naturalmente com a ação dos animais silvestres que comiam as frutas e espalhavam as sementes pelo terreno.
Do outro lado da cerca da roça, era um pasto onde ficava o gado leiteiro do Sr. Carlos. Muitos pés de coqueiros do tipo macaúva e Guairova se erguiam em toda a extensão do pasto, parecendo que foram plantadas de uma forma regular e bem distribuidas. Uma macaúva chamava a atenção do menino pela cor dos frutos que trazia em seus cachos.

- Deve de tá maduro, pensava o menino. - Vou lá vê.

E foi. Atravessou a cerca de arame farpado, caminhou por alguns metros adiante e já estava junto ao coqueiro. Depois de alguma procura, já encontrara pelo menos dois frutos no chão. Mordeu um deles e sentiu o cheiro gostoso do coco maduro. Atirou algumas pedras nos cachos fazendo cair mais alguns frutos, encheu os bolsos e se foi. - Vô levá pra Zilda, pensou falando baixinho. - Ela vai gostá.
A Zilda gostou tanto que decidiu, recolher mais alguns cocos depois do dia de trabalho. Normalmente os coqueiros que produziam os côcos mais doces e cheirosos eram marcados pelas crianças, pois nem todos possuíam tais qualidades.
No final do dia, o cansaço não poupava ninguém. Agora era ver o resultado do trabalho. O Seu Zé Carlos começava pesando os fardos mais cheios. A balança consistia em, de um lado, uma barra de ferro com escala de um quilo, num total de cento e cinquenta ( dez arrobas), onde deslizava um anel metálico que marcava o peso e, do outro, um contrapeso que fazia o equilíbrio . Um gancho superior servia para pendurar e um inferior servia para enganchar os fardos de algodão.
A expectativa terminou quando o pesador disse:

- Centi quarenta quilo no totar. Nove arroba e pôco. Vô pagá pro ceis nove arrôba e meia”. Foi uma surpresa, não era um bom resultado considerando o trabalho dos dois, e o esforço ter sido grande.
- O argudão tá muito manero. - Explicou o Sr. José Carlos. - Só dá inchimento. Cê vê, dois fardo desse tamãe e só pesá isso. - Completou.

Tudo certo. Com o pagamento já no bolso, os catadores de algodão voltaram para casa alegres e contentes, não se esquecendo de passar no pé de macaúva para apanhar mais côcos.
Pelo caminho, resolveram continuar por dentro do pasto para visitar o “pé de jenipapo”, dono de umas frutas muito saborosas. Eles conheciam o endereço por ser no caminho da escola. Deram sorte, já começavam a amadurecer alguns frutos e a colheita rendeu alguns frutos que levaram para casa como troféu.
Já era quase noite quando chegaram em casa, e foram direto para o banho. O Paulinho foi primeiro, depois os outros. As meninas ainda foram “puxar” água no poço para colocar no fogo para esquentar. Naquele tempo o Aparecido já havia comprado um chuveiro de folha, que substituiu o “banho de bacia”.
O chuveiro consistia em um balde de vinte litros confeccionado em folha, com uma saída de água por baixo, com um sistema de registro manual de alavanca que controlava a saída da água, e uma espécie de funil invertido com a base furada, por onde a água saia em ducha. A água era preparada num balde, com a mistura de água fria com água quente vinda do fogão, com a qual era abastecido o “chuveiro” por cima. O equipamento era levantado através de cordas e carretilhas à uma altura de mais ou menos dois metros, altura suficiente para os adultos ficarem por baixo para tomar a ducha d'água.

Depois do banho, a roupa limpa, um bom jantar preparado com carinho pela Dona Erondina, e ainda sobrou energia para correr no terreiro atrás dos vagalumes, até que a mãe chamou:

- Zilda, vem pra dentro e chama os minino pra lavá os pé pra dormi. Amanhã têm que pulá cedo pra ir pra escola.

A ordem foi cumprida e o cansaço superou as energias.

- Bença, papai. Bença, mamãe.
- Deus abençoe.



ENCHENTE NA ROÇA


Para sobrevivência da família, o cultivo do café não era suficiente. Era preciso a complementação. Na parte do sítio que ficou com o Aparecido, a maior parte das terras era constituída de pedregulho e não era possível nenhuma cultura. Nesta parte fora semeado capim para servir de pasto para os animais.
Dentre os espaços de terra cultiváveis, a várzea era a mais aproveitada. Naquele terreno que abrangia toda a margem do Córrego do Tieta, eram plantados durante o ano várias culturas como repolho, tomate, alho e outras verduras de folha.
Naquele tempo, os canteiros de alho já estavam prontos e acabavam de receber as sementes, que normalmente eram plantados no período da quaresma (quarenta dias que antecedem a páscoa dos cristãos). Os canteiros eram desenhados de uma forma quadrada e plana com corredores rasos por onde eram irrigados por infiltração. Nas margens do córrego nada era plantado pois a expectativa das enchentes nesse tempo era comum. As cheias chegavam a encobrir as pontes e varrer as plantações marginais.
Naquele dia, toda a família estava trabalhando na lavoura de café, no sitio do Sr. Augusto Vasconcelos. As nuvens e o céu encoberto previam que uma chuva estava por vir. O mês de março sempre trazia as chuvas fortes, nem sempre bem vindas pelos lavradores.

Aparecido terminara de passar a “meia-lua” nos corredores das “ruas” de café e chamou o filho mais velho:

- Rube, termina essa rua, chama os minino, guarda as enxada no rancho e vam'imbora. Vem chuva braba por aí. Já dá pra escutá o baruião. - Ordenou já desmontado as tralhas do animal para guardar no rancho.

Foi o tempo de chegar em casa e a chuva caiu. Primeiro foi a ventania depois a escuridão e os granizos vieram com vendaval. Os meninos se divertiam em olhar as “pedras” caindo do céu.

- Num sei não, mais eu acho que vai dar enchente das grande. Faiz muito tempo que num chove desse tamãe. Nóis pricisava de refrescá um pôco, mais num pricisava exagerá tanto. - dizia a Dona Erondina a olhar o tempo ainda com muita chuva por vir.

Cido estava pensativo, sentado num banco na porta da cozinha, e pensou alto:

- Eu só tô preocupado é com as prantação lá da horta.

Depois de quase uma hora de chuva, o tempo se aquietou e todo mundo saiu para fora para ver o estrago. Nos buracos de terreno e na beirada dos baldrames da casa ainda havia muitos montes de granizos que se esqueceram de derreter. Um barulho enorme se ouvia da baixada: era o movimento das águas que desciam pelo córrego. Todos queriam descer até a parte mais baixa do sítio para ver a “enchente”.
O Córrego do Tieta mais parecia um grande rio. Eram mais de quinze metros de largura de água. A cor avermelhada e a velocidade da correnteza causavam medo. Os pequenos arbustos da mata ciliar estavam quase que totalmente encobertos.

- Acho que nóis perdemo a prantação de aio. A inchente parece que tá chegando no rêgo d'água. Si chovê mais um pôco vamo tê que reprantá tudo, dizia o Aparecido já fazendo a conta do prejuízo causado. - O cumpade Paulo deve de tê perdido toda cebola dele. Eu falei pra ele num prantá muito perto das beira do córgo. A gente num pode cunfiá nesse tempo. Logo agora que ele tava pra coiê, coitado. - completava olhando a horta do irmão completamente alagada pela enchente.

Desceram até a margem para ver mais de perto o estrago das águas. Ainda chuviscava um pouco, mas o tempo já clareava e a beleza das águas a rolar se misturava com a desolação dos estrados contabilizados.
Os meninos corriam para todo lado buscando ainda as poças d'água para brincar, e se molhar um pouco mais do que molharam na chuva de granizo.
Para o Aparecido, o prejuízo não fora tanto a enchente do córrego, mas a chuva de granizo, que acabou com as lavouras de tomates e repolhos. Estas culturas eram os produtos de troca para a manutenção do dia-a-dia da família.

- Os estalero de tomate vai tê que arrancá, num sobrô nada. Mais a inchente num chegô a estragá os cantero de aio, graças a Deus, dizia o Aparecido aliviado. - Mais aquele eito de repolho parece que num vai dá pra aproveitá. Só pros porco memo, completava olhando triste para a extensão de água que aos poucos ia diminuindo de velocidade, deixando para trás a visão da destruição nas plantações.

Na hora do jantar, o comentário do Aparecido era sobre a enchente :

- Eu fico pensano no povo que mora aí pá riba. Eles pranta os arroiz tudo nas berada do córgo. Chega num tempo desse, perde tudo. Fica sem arroiz nem pro gasto. Nóis ainda temo que dá graças a Deus por num tê perdido o aio. Os repôio a gente pranta outro e logo já vai dá cabeça. E completava: - A gente fica sabeno de muita gente que perde tudo nessas enchente, as prantação, a casa onde mora... Otros perde até a vida....

Já era tarde e o dia foi muito cheio de preocupações. No dia seguinte provavelmente iriam aproveitar a terra úmida para semear alguma coisa. E tudo continuava bem, pois nenhuma vida foi perdida.

- Graças a Deus, dizia o Aparecido. Graças a Deus.



A CUNHA DO CUNHADO



O dia de sábado amanheceu bonito. O sol já começava a brilhar no horizonte e fazia reluzir as gotas de orvalho que insistiam em aumentar beleza das plantas do sítio.
Na casa da Laura, o dia começava bem cedo, pois era preciso acender o forno e preparar os amendoins que seriam transformados em saborosos pés-de-moleque para que João saísse vendendo nas colônias.
Os meninos, Valdeci e Jura já estavam num canto da casa sentados em volta de uma peneira de taboca (uma espécie de bambu) a descascar as vagens dos amendoins.
A Laura estava na beira do forno atiçando os gravetos no fogo para mais uma torrada.

- João, pega pra mim uns pau-de-lenha bão pra acender o fogo. Essas lenha parece que tão podre, num fais brasa! - Reclamava impaciente.
- Num tem não, Laura. Os pau que tinha já pusemo tudo no fogo onte, vai sê priciso buscá mais. Eu acho que ainda pricisa sê rachado.
- Uai, então vai rachá um pouco, senão esses doce não vai saí hoje - Determinou.

João era um homem de estatura baixa, um metro e meio, considerado quase um anão, e não gostava muito do trabalho da roça, por isso preferia trabalhar com as vendas de verduras e doces que a Laura preparava. Tinha sua esposa como comandante do lar. Ela surpreendia pelo seu comando e o seu caráter.
Apanhou uns restos de lenha que tinha no paiol e foi levar ao forno que ficava numa cobertura de telha nos fundos da casa.

- Aqui, Laura, eu vô pricisá ir lá no Cumpade Parecido buscá as cunha pra rachá umas tora, que só com o machado vai sê muito difíci. Põe estes pau mais piqueno no fogo por enquanto, daqui a pôco eu vorto pra traze mais.

O João saiu e foi na casa do Aparecido buscar as cunhas. Naquele sábado, Aparecido iria passar veneno nas plantações de tomate e estava na tulha a preparar o material que iria levar. Os filhos já tinham descido pra horta e preparavam os canteiros para a plantação do alho.

- Dia, cumpade Parcido!
- Dia cumpade João! Como é qui vai a cumade Laura e os minino? - Perguntou
- Tão lá preparano os amendoim pra fazê doce. Eu vim aqui buscá as cunha emprestado pra eu rachá umas lenha. O sinhor me empresta? Amanhã memo eu devorvo pro sinhor.
- Empresto sim. Eu vô já pegá pro sinhor, mais toma muito cuidado com elas, que estão novinha. Óia só, o sinhor num vai batê nelas com marreta de ferro que elas desbeiça. Bate com macete de pau. Se o Sinhor num tiver um, leva o meu.
- Num pricisa não, cumpade, eu tenho lá. Pode ficá tranqüilo que eu num vó estragá as cunha do sinhor não...
- Tá certo. Eu só falei pra lembra o sinhor.

João não era muito amigo dos cunhados ( Aparecido e Paulo). Tratavam-no com muito respeito mas pouca intimidade, pois não aprovavam muito o seu modo de viver. Aquele aviso, era porque já conhecia o seu jeito e descuido com as ferramentas, tanto as dele como as que emprestava dos outros.
No sítio dos meninos, a casa do meio era da Laura, trezentos metros distante da casa do Aparecido e a última era a do Paulo, na divisa com o sítio do José Batista.
A casa da Laura era pequena, espremida entre um pequeno terreiro e a cerca de arame que dava para o pasto dos animais. Ela era a terceira dos irmãos e já trazia no rosto, a mostra de uma vida cheia de sofrimentos.
Com os traços indígenas bem destacados nas faces morenas queimadas pelo sol do trabalho, cabelos lisos e negros que quando soltos cobriam suas costas magras, arcadas pelo peso do trabalho. Mãe de dois filhos, o Valdeci e o Doraci, conseguia administrar a casa e também cuidar do roçado e a plantação de café. Sempre com um lenço na cabeça, um olhar esperto e um cigarro de palha entre os dedos.
A família tinha um contrato com o fazendeiro Augusto para cuidar em parceria de uma plantação de três mil pés de café, donde tiravam, na época das colheita, a maior parte da renda em dinheiro para compra dos bens de consumo como açúcar, sal, panos para roupas e manutenção da casa. Os dois filhos, assim como os outros primos, ajudavam na lida da roça depois da escola. Eram bons garotos e muito participativos, mas a pobreza reinava sempre e consequentemente pouca alegria lhes foi dada nas suas infâncias.
João chegou em casa e foi rachar as lenhas. Não encontrou o macete de madeira que o Aparecido havia falado, então acabou por utilizar a marreta de ferro para bater nas cunhas. Como previu o dono das cunhas, que eram novas, ficaram um pouco danificadas.

- Num é muita coisa , o Parcido nem vai percebê, pensava.

Deixou as cunhas num canto, levou as lenhas para perto do forno e foi pra dentro de casa cuidar de fazer os pés-de-moleque enquanto a Laura preparava o almoço.
O Valdeci e o Jura, como chamavam o Doraci, já haviam ido à horta buscar verduras e brincavam perto do chiqueiro dos porcos, jogando folhas velhas de repolho e vendo a festa dos animais a disputar cada uma.

- Ôs minino, vai lavá as mão pra cumê! Anda logo que já tô fritano os ovo! - gritou lá da cozinha.

Os dois vieram correndo, lavaram as mãos de qualquer maneira e foram esperar de prato na mão ao lado do fogão de lenha.
Depois do almoço, o João foi levar as cunhas na casa do Aparecido, pois sabia que caso ele precisasse usá-las e não as encontrasse ficaria nervoso.
Aparecido preparava para sair pra vila, comprar uns mantimentos para casa quando o João chegou:

- Cumpade, vim trazê as cunha do sinhor. - falou com as duas peças nas mãos.

- Tá bão cumpade. Dá elas aqui que eu guardá na tuia.

Quando o Aparecido pegou as cunhas com as cabeças todas desbeiçadas, não se conteve e o sangue subiu, e com as mesmas mãos devolveu-as para o João:

- Cumpade, eu num falei pro sinhor não batê com a marreta de ferro nas cunha?- Eu num quero mais essas cunha! O sinhor mi compra outra e pode ficá com estas pro sinhor.
- Cumpade, eu bati foi com o macete de madeira. Essas cunhas é que num presta. O sinhor fica cum elas memo que eu num vô compra outras não.

João jogou as cunhas nos pé do Aparecido e saiu pisando alto.

- Õ cumpade, o sinhor não se avexa não? Falá que usou macete de madeira nessas cunha? Acho é que o sinhor num tem é vergonha na cara. Além de usá as ferramentas dos outro, ainda tem corage de dizê que as minha cunha num presta? Quem num presta é o sinhor. Nunca mais eu empresto nada que é meu pro sinhor. Se o sinhor quisé vai tê que compra as suas própria ferramenta!

O João que já tinha dado alguns passos para ir embora, voltou e retrucou:

- Fais bão proveito. Eu num vô pricisá memo das ferramenta do sinhor. Tem gente menos guinorante que pode me imprestá.

O negócio foi sério e as palavras foram fortes. Trocaram muitos xingamentos e ofensas. O Aparecido que sempre fora um homem muito determinado e com muito brio, depois daquele episódio não mais conversou com o João. Só vieram a se falar depois de muitos anos.
No ano em que venceu o contrato de trabalho dos cafezais, eles foram os primeiros a colocar a necessidade de vender o sítio, todos concordavam, pois, sem o trabalho nas plantações de café, não era possível sobreviver
O sítio foi vendido no ano de 1968 e Laura foi morar na cidade de Fernandópolis com a família, numa casa pequena comprada com o dinheiro recebido da venda do sítio. João continuou trabalhando com a sua cesta de pé-de-moleque e verduras, os meninos, agora com dez e doze anos já podiam encontrar trabalho no comércio ou nas oficinas da cidade.

No ano de 1974 , Valdeci já contava 18 anos, era um jovem saudável e muito querido, principalmente pelas garotas da cidade. Trabalhava numa loja chamada Pastorinho e era o orgulho da Laura por ser um menino muito dedicado e bastante inteligente. O Vardê, como era chamado pelos amigos, gostava muito de passear e de namorar.
Num dia de domingo, estava um sol muito gostoso e o Valdeci combinou com a turma de amigos de passear logo depois do almoço. Ao sair falou pra sua mãe:

- Mamãe, eu vou sair com uns amigos passeá no açude. Lá pela cinco horas estou de volta.
- Tá bão filho, num vai entrá n'água que ocê acabô de armuçá. Toma cuidado! Falou a Laura preocupada.
- Pode dexá mamãe. Fica tranquila.

Se reuniram perto da Rádio Cultura e foram no açude. Chegando lá o grupo de jovens foram jogar nas margens da lagoa e a bola caiu na água.

- Deixa que eu pego. - falou o Valdecir

Pulou na água, e não se sentiu bem, mas mesmo assim insistiu em encontrar a bola.

- Eu não estou encontrando, onde ela está?- falou já meio sufocado.
- Deixa quieto, Vardê. - falou o amigo. - Sai daí que você não está bem

Ele não saiu. Ao dar o segundo mergulho para pegar a bola sofreu uma congestão fatal. Não houve mais tempo de resgate e ele se afogou nas águas rasas e barrentas daquele lugar. Os amigos ficaram arrasados. Uma tragédia.

A Laura nunca mais foi a mesma depois daquele episódio. O desgosto tomou conta dela, adoentou-se, deprimiu-se e, dois anos depois também morreu. Com ela também morreu a família Antonio de Lima.

Aparecido voltou a conversar com o João, numa tentativa de aproximação dele com o menino Jura. Se desentenderam porque o filho o achava culpado pela morte da mãe. E também porque descobriu um caso do João com outra mulher, com a qual saia, enquanto a Laura sofria adoentada.
A intervenção do Aparecido foi em vão. Mas a mágoa que tinha ficado em seu coração, por causa da cunha estragada se curou e ele ficou em paz.

A cunha e o cunhado, a partir de então, tornaram-se apenas uma história para se contar.



PAMONHA DE MILHO



A roça de milho estava uma beleza, em cada planta via-se até quatro espigas penduradas como revólveres no coldre de um soldado. As pessoas costumavam observar nas “bonecas” do milho, o cabelo, que é a parte da planta que recebe o pólen para a reprodução: Quanto mais viçoso o cabelo, melhor serão a espiga e os grãos. Quando o cabelo escurece, ele se descola da espiga e cai, isto indica que está no ponto de colheita para fazer a tradicional pamonha.
Na casa dos meninos, era de praxe contar com a presença de todos os irmãos para o evento das pamonhas, que normalmente era no fim de semana. Esta festa, como podemos chamar, trazia alegria a todos, desde a colheita até a disputa para quem conseguia comer mais em menor tempo. Foi marcado o dia. Os convidados chegaram cedo.
A roça de milho ficava no espigão, do outro lado do córrego. Primeiro, era preciso buscar o milho na roça: colher, ensacar e transportar nas costas os milhos colhidos. Depois é que começava a verdadeira festa.

A divisão de tarefa foi feita:

- Paulinho, vai com o Marcilio na casa da Dona Luzia do “Seu” Carlo buscá uns dois ou treis queijo, e mais uns treis litro de leite que é pra nóis colocá nas pamonha. Vai dipressa que daqui a pôco o povo chega com os miio e o ceis vai ajudá discascá.- A Dona Erondina ditava as regras para os dois menores da casa.
- Num vai pro meio do pasto, que tem vaca braba de cria nova, toma cuidado. Fala pra Dona Tiana que depois nóis acerta com ela.

Normalmente este pagamento nunca era aceito, pois sempre era mandada uma vasilha cheia de pamonha e ficava tudo no “Deus lhe pague”.
Os maiores já haviam saído para a roça, todos com um saco de estopa na costa que voltaria cheio de belas espigas.
O Paulinho e Marcilio , já pegavam os “arquinhos”, (aro de ferro, tirado de rodas de carroça, que os meninos brincavam rodando com a ajuda de um suporte de arame rígido) quando a mãe gritou:

- Dexa isso aí minino, num tem nada que levá isso. Vai num pé e vorta noutro.

Os meninos saíram bicudos correndo em direção à casa do Sr. Carlos, no sítio vizinho.
As sacas de milho já começavam a chegar e os meninos do queijo ainda não chegavam, e, as mulheres já procuravam facas para iniciar o “corte” das espigas para retirar as palhas:

- Vamo forrá uns sacos ali no terrero pra nóis colocá as ispiga cortada. As paia pode colocá nesse balaio memo, que dispois nóis vai lavá elas.

Cada um se acomodava num canto, faca na mão, e começava o trabalho. Um pequeno corte na base da espiga liberava as palhas que eram retiradas com muito cuidado. As mais bonitas eram separadas dentro do balaio (jacá) para serem usadas na confecção da pamonha.
Os meninos chegaram com os queijos. Trouxeram três.

- A dona Tiana disse que num é nada não. - falou o Marcilio pra mãe que se apressou em guardar os queijos na cozinha, onde depois seriam partidos em pequenos pedaços e colocados juntos com a massa preparada para a pamonha.
- Dispois nóis manda umas pamonha de quejo pr'éla. Eu acho que o mio deis num tá no ponto de pamonha ainda.- concluiu Erondina.

As espigas de milho descascadas e limpas do “cabelo” eram colocadas em um tachinho de ferro e seguiam direto para o ralador. Duas mulheres operavam o instrumento que transformava os milhos da espiga em uma massa amarelada substanciosa.
O milho ralado era então temperado: um pouco de gordura ( ou óleo), leite, sal para as pamonhas salgadas e o açúcar para as doces. O queijo fazia a diferença na pamonha, e era colocado na hora de amarrar.
As palhas de milho mais bonitas foram reservadas em um balaio, que depois de lavadas serviram para fazer o tradicional “copinho” para encher com a calda já temperada e dar origem à deliciosa pamonha. A palha era unida de aba a aba, formando um tubo e dobrada do lado da ponta da espiga fechando o “copo” onde a calda era despejada, depois fechado com uma nova palha e amarrado com tiras de pano ou “embira”, uma fibra muito resistente tirada das folhas externas do tronco da bananeira .
No fogão de lenha, já borbulhavam dois tachos e uma lata, cheios com água fervente para cozinhar as pamonhas já preparadas.
Cada pamonha era marcada de forma especial: nas “de doce” foram feitos um nó de laçada, as “de sal” um “nó cego”; as de queijo, com tiras de pano, as sem queijo, com embiras de bananeira; assim, depois de cozidas as pamonhas já atendiam as várias preferências.A festa terminou com a grande degustação. Cada um buscava seus assuntos favoritos: as mulheres falavam sobre os filhos e sobre as receitas de doces, os homens sobre as plantações e as colheitas.
Enquanto a deliciosa pamonha era degustada, os assuntos vão sendo colocados em dia e as amizades são fortalecidas pela simplicidade daquelas famílias que vivem mais um dia de alegria e felicidade.





UM CRIME INOCENTE



Era noite de outono e o frio já começava a fazer parte do cotidiano. O tempo seco contribuía para acrescentar um cheiro diferente de fumaça das queimadas das roças.
Não se falava em ecologia, em proteção ou extinção: falava-se tão somente em sobrevivência. O modo de produção no campo ainda começava pelo desmatamento e o fogo. Os poucos capões de mato, obrigatórios por lei, diminuíam cada vez mais pela divisão das grandes fazendas em pequenas propriedades.
Naquela chácara, havia uma reserva e à noite podia-se ouvir de lá diversos sons noturnos de diversos animais como o curiango , os morcegos, e outros bichos.
Naquela noite, estavam todos ainda no terreiro a contemplar a lua e o céu estrelado à procura de uma luz andante, que costumavam chamar de “planeta” (que muitas vezes era apenas um avião que passava), quando ouviram os cães latirem incessantemente no cerrado ao lado do mandiocal. Alguém gritou quase que de pronto:

- É o gambá.- Era a Dona Erondina, que carregava uma enorme diferença contra esse bicho que atacava todas as noites a galinhada criada no sítio.
- Vamos pegá-lo - gritou um irmão! - Desta vez ele não escapa!

Foi uma correria. Foram todos acompanhar a “caçada” ao pequeno bicho, que no desespero da fome, tornara-se caça ao invés de caçador.
Chegaram. Era um coqueiro espinhento que chamavam de “macaúva”. Em baixo, dois cachorros corriam de um lado para outro, olhando para o alto e latindo como se quisessem subir tronco acima. Um grito de lá :

- Pega Lili ! . Pega Museu! - E os cães, querendo cumprir a ordem, ficavam cada vez mais inquietos.

A visão era pouca. O lampião de querosene que traziam, iluminava menos que a lua, expectadora silenciosa de toda aquela cena, parecendo observar todos os cada detalhe.
E a ordem veio:

- Marcilio, Paulinho, vai buscá a vara de bambú e uns trapo . Vamo tocá fogo no coqueiro que o gambá desce.

Inocentemente, saíram os dois menores correndo para cumprir a ordem, que não era estranha, pois aquela cena se repetia muitas vezes naquela época do ano.
Foram apenas alguns minutos na corrida até em casa e os “ingredientes” chegaram. Enrolava-se os panos na ponta da vara, despejava-se querosene no pano, tocava-se fogo e a tocha estava pronta.
Sem se preocupar com o perigo da queimada , a vara subia com a ponta de fogo e as folhas secas do coqueiro viravam alimento das chamas que cresciam, tornando-se um imenso clarão de labaredas e faíscas.
Por alguns instantes, esqueceram-se do animal que estava naquele tronco, protegido pelas alturas: pensavam apenas, na beleza da aventura das chamas a consumir uma vida vegetal. Um crime inocente.

De repente o barulho da queda. Os latidos cessaram. Uma luta iniciou-se entre os dois cães a disputar a presa, que entre o fogo e a vida preferiu se arriscar num pulo para a morte.

- Acabô. Vamimbora pra casa.

Para trás algumas pontas em brasa do coqueiro evidenciavam a marca de uma aventura . A aventura da luta pela sobrevivência do homem na busca pela sua soberania de conquista do espaço.





O TREM DE FERRO


A vida da lavoura estava ficando muito difícil para todos e o êxodo rural acontecia diariamente. Muitas e muitas famílias sonhavam em, um dia, partir para a cidade grande para trabalhar nas fábricas, que cada vez mais absorviam a mão de obra barata dos homens do campo. Eram quase analfabetos, mas, com garra e determinação, capazes de produzir o máximo sem reclamar direitos, o que de certa forma, desconheciam ou não se preocupavam em conhecer, visto que a mudança na qualidade de vida era radical.
Cido, com sua pouca formação escolar, se preocupava com a formação de seus filhos, sempre que tinha oportunidade, dizia:

- Quando todo mundo tivé tirado diproma, nóis vai morá na cidade. Eu num quero vê meus filho sofrendo a vida intera no cabo da enxada.
- Tô até veno: nóis numa casa de tijolo, com luis elétrica, chuvero e geladera. Tô até veno... Desdenhava Erondina não acreditando naquela promessa do seu marido.
- Você vai vê! Espera só os minino terminá os estudo. Eu vô vendê esse sítio e compra uma casa lá em São Paulo. Insistia Aparecido, sinalizando com o dedo indicador, dando mais ênfase à sua promessa.
- Mamãe, eu tamem vô morá na cidade? Eu vô gostá de morá na cidade grande. Lá passa bastante avião Real. Eles deve de morá tudo lá. Dizia o Marcilio, sonhando um dia ver de perto um daqueles aviões enormes, que passavam muito alto sobre o céu do sítio, fazendo um grande ruído.

Parece que foi no ano de 1968 que o sítio foi vendido. Um certo Seu Altamiro, que trabalhava como “oveiro” nas redondezas, é que fez negócio com os Meninos. No contrato, ficou acertado que o Aparecido iria morar mais um ano no sítio, até terminar o prazo do contrato do café com o Seu Augusto Vasconcelos.
Naquele mesmo ano, a Laura e o Paulo se mudaram para Fernandópolis, e a história da mudança do Aparecido do sítio para a cidade grande já começava a se concretizar.
Passado um ano, estava terminada a colheita do café, foi feita a entrega da roça e do sítio. Mas como ainda faltavam alguns meses para terminar as aulas dos meninos, Aparecido decidiu ficar morando na vila até que pudessem todos se mudar para a cidade grande.
Nos fundos da sorveteria do Miguelzinho havia uma casa pequena que serviu de abrigo para a família do Aparecido. Não era de muito conforto, mas já tinha luz elétrica e não precisava de lamparina de querosene. Ninguém mais tinha de trabalhar na roça. Tudo estava mudando na vida da família.
O Aparecido decidiu buscar ajuda, na casa de um amigo que já tinha se mudado para cidade. Era o Sr. Damião, que já há dois anos morava na cidade de Campinas, num bairro chamado de Jardim Eulina. Lá se foram o lavrador e seu filho Rubens em busca de outras paragens num trem de ferro da Companhia Paulista.
Não passou muito tempo e o Rubens voltou com uma notícia boa:

- Papai já arrumô serviço na Singer e já tá trabalhando. Eu só num consigui ainda porque eu tenho que tirá a reservista. O Papai pediu pra nóis arrumá tudo e, logo que nóis pude, é pra ir embora pra lá tamém. Ele já comprou até uma casa pra nóis morá lá.
- O Parecido tem cada uma. Como que nóis vai pra lá sozinho? Nóis nem sabe onde é que é esta tal casa que ele comprô! A Erondina, que agora era a chefe da casa, se preocupava com o andamento daquela situação e sentia um pouco de medo ao pensar que deveria ir morar num lugar desconhecido. Ela que quase nada conhecia de cidade, de trem, de Campinas.

A Sinhora num se preocupa não, mamãe, ele falô que é só o Paulinho e o Marcilio terminá as prova que nóis pode ir. E pidiu tamém pra nóis levá o Domingo e a Del com nóis.
Domingos era o marido da Mirnadel, casados há algum tempo, não haviam conquistado ainda o lugar ao sol tão esperado. Estavam morando também na vila, perto da garagem da Prefeitura num pequeno espaço com quarto e cozinha. O Domingos trabalhava na roça como bóia-fria, mas não estava ganhando o suficiente para poder cuidar da esposa e do pequeno Jonas, o primeiro fruto daquele casamento.

- Acho bão memo.- Suspirava aliviada a Erondina. - Eu num ia aguentá dexá a Mirnadel cuesse fio aqui sozinha. Meu coração ia ficá muito apertado. Mais se o Parcido arrumô serviço fácil, o Domingo deve de arrumá tamém... Eu acho...

Daquele dia em diante tudo girou em torno da mudança. A preparação das caixas comas coisas que podiam ser aproveitadas. Não podia levar muito, pois a mudança seguiria de trem e o preço do transporte era pelo peso. - Tudo que se podia economizar era bom, pois quase todo o dinheiro já tinha sido gasto para pagar o armazém e o aluguel da casa na vila.

- A gente divia levá só o fogão a gais e as traia de cozinha.- Resmungava a Erondina. - O resto nóis compra novo por lá. Nóis num tem nem cadeira direito pra sentá, é só uns banco veio caino os pé!
- Mamãe, num vai levá o guarda-loça? Como a sinhora vai guardá os presente que a sinhora ganhô nos dia das mães? Perguntou a menina Nair.
- Isso dispois a gente dá um jeito. Precisa mais é as coisa de cumê. A gente num sabe quanto que custa tudo por lá? Deve de ser tudo muito caro!
- Eu quero levá o Lili. Eu num vô dexá ele aqui. O Marcilio falô quase chorando.

Lili era o cachorrinho que nascera no sítio e que se tornara grande amigo das crianças, agora tido como parte da família. Havia também o cachorro Museu, mas este tivera um fim trágico ainda no sítio.

- Eu acho que num pode levá cachorro no trem. Pricisa de perguntá pro Rube. Se pudé a gente leva ele com nóis.- Falava a Erondina acalmando o menino chorão.

As provas da escola foram acontecendo e os resultados esperados com muita ansiedade por todos. As notas dos meninos deveriam ser fechadas com média para evitar o exame final. E deu certo, ainda era novembro e a transferência do Paulinho e do Marcilio foi autorizada pelo diretor. Já estavam livres para a grande mudança.
Chegou o grande dia. O caminhão encostado no estacionamento da sorveteria do Miguelzinho cheio de partes de utensílios que seguiriam para a cidade de Jales e de lá, para Campinas , mostrava que aquela história não tinha mais volta: o Aparecido havia cumprido o prometido.

- Já podemo ir . Eu e a Mirnadel, junto cum o Jona, vamo na cabina e os outro vão lá em cima na carroceria. Determiva a mãe.
- Sobe lá mininos, tem uma corda pra ocêis sigurá. Quando chegá na estrada, oceis agacha que fais muito vento.- Orientava o motorista.
-Ô Paulinho, tem uma minina aqui que qué falá tchau pro cê. Desce um poço daí e vem cá dá um abraço nela.

Uma menina, sobrinha do Seu Miguelzinho, cismou que era namorada do Paulinho e queria dar uma lembrança para ele levar. Aquela menina tinha mais ou menos uns dez anos, magrinha, cabelo amarrado com “maria-chiquinha”, olhava com olhar lânguido para o caminhão, esperando uma decisão do menino que ela considerava o seu “primeiro namorado”. Talvez já tivesse escrito no seu caderninho, palavras de amor que não podiam ser ditas. Talvez já tivesse suspirado no seu coração, alguma emoção de saudade. Talvez tivesse experimentado o seu primeiro momento de amor, um amor diferente, mas um amor verdadeiro que se fechara como cofre em seu peito, que agora queria exteriorizar.

-Eu num quero descê. Eu já tô aqui em cima. Purquê num falô antes...

Os olhos da menina se encheram de lágrimas e num gesto de decepção foi se acomodar nos braços da mãe que acompanhava a saída da família.

-Num seja caipira minino. Desce daí e vem falá tchau pra minina.- Ordenou a Erondina. - Vem dispidi dela, num custa nada!
-Tá bão. E lá foi o Paulinho em busca da lembrança da pequena namorada. O presente era apenas um bibelô, mas junto com ele a menina entregou um papel com endereço, e com o rosto já molhado de lágrimas beijou a face do Paulinho que se resumiu em dizer apenas.

- Brigado. Tchau!



E o caminhão seguiu estrada afora. A Vila de Dolcinópolis ficava para trás. A expectativa da mudança não deixava ninguém pensar que aquela poderia ser uma viagem muito longa. Que poderiam não voltar mais para aquele lugar onde tantas recordações se faziam nas memórias de cada um.
Num engradado de madeira, especialmente construído para ele, estava o cachorro Lili, que deveria ser despachado para Campinas no carro de bagagem. Para o Marcilio aquele era o maior presente que podiam ter lhe dado.
Na estação do trem a ansiedade era muito grande para todos os meninos. Ninguém ainda havia experimentado aquele tipo de transporte. Uma mistura de medo e alegria tomava conta de todos. Até a mãe estava apreensiva com toda aquela situação. O Domingos e o Rubens trataram de comprar as passagens e embarcar as mudanças.

Deu tudo certo. A viagem estava prevista para durar doze horas. O vagão em que viajavam a família era de segunda classe: bancos desconfortáveis, muito barulho e muito cheiro de comida que muitos viajantes levavam para degustar durante a viagem, os tradicionais “farofeiros”.

A família do Aparecido não era diferente. Demorou muito para todos se acomodarem. Antes, com certeza, os meninos trataram de passear por todo o trem para conhecer cada espaço e cada vagão. Demorou, mas cada um tomou um lugarzinho e tirou uma soneca. Só a Dona Erondina não conseguiu pregar os olhos.
Já eram mais ou menos seis horas da manhã quando o bilheteiro-picotador passou gritando :

- Acorda, pessoar. Tá na hora de lavar o zóio. Acorda, pessoar. Tá na hora de lavar o zóio.- repetia.

Foi uma acordada geral. O Paulinho que dormia perto da mãe, levantou o pescoço, olhou pela janela e ficou a observar o teto das casas de uma cidade.

- É Americana, daqui a pouco a gente chega em Campinas- Um senhor já de meia idade, que tinha conversado bastante com Dona Erondina, informou o menino que tentava adivinhar que talvez já fosse Campinas, pelo fato de ter tantas casas e tantas antenas de televisão sobre o telhado das casas.
- Aquilo é antena de televisão. Quase todo mundo tem televisão aqui na cidade. continuou explicando.

Era preciso mesmo lavar os olhos. O banheiro do vagão tinha fila. Parece que todos tiveram a mesma idéia. Enquanto esperava, o movimento do trem chamava a atenção do menino. Cada palavra e cada gesto eram observados.

- Óia o leite quente. Café com bolacha. Gritava o funcionário do trem.
- Dá um pôco aí.- respondia o menos avisado, não sabendo que tinha que pagar pelo serviço.
- Estação Boa Vista. Próxima parada: Campinas avisava o chefe do trem.
- Oba! Já chegamos. Mamãe, gente já vai apiá do trem. O Home disse que Campinas é a próxima estação. Temo que pegar as mala. Cadê o Marcilio? - Paulinho não sabia o que fazer de tanta ansiedade.

- Num sei de Marcílio nenhum. Ele deve de tá por aí com o Rube e o Domingo saracutiano pelos vagão. Daqui a pôco eles vêm. De certo eles sabe que nóis temo que apiá em Campinas.- respondeu acalmando o Paulinho.

Foi um “tropé danado”, como diria a Dona Erondina. Todo mundo chegando num desespero para pegar as malas e descer na estação em Campinas. O trem nem havia parado direito e todos já aguardavam esperando a porta se abrir. Os meninos desceram primeiro, cada um com uma mala, os outros foram descendo e se juntando na plataforma.

- E agora, Rube, como é que nóis vai encontrá teu pai nessa cidade desse tamãe?- perguntou a Erondina preocupada.
- Pode dexá mamãe, eu sei como é que faiz pra pegá o ônibus. Nóis tem que pegar um carro que tá escrito Jardim Eulina. É só esperá no ponto que ele passa.
- E onde que é o ponto que a gente vai esperá? Já tô é meio perdida. - dizia a dona Erondina já resmungando, nervosa pelo cansaço da viagem.

Seguindo as orientações do Rubens, partiram todos em fila indiana para a localização do ponto de ônibus. E o Paulinho foi contando as pessoas :

- Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito , comigo nove. Nove pessoas e um bebê. - Nossa! Será que vai cabê tudo num carro? - pensou.
- Deve de sê uma jardinera, daquelas que faiz a linha de Fernandópi. Num é Rube? - ninguém respondeu. - Deve de sê! deduziu
- Chegamo. É aqui que o carro passa. É só esperá. Disse o Rubens , orgulhoso de ser o,líder daquele grupo.

Depois de algum tempo, o ônibus aparece:

- Alá ó! Jardim Eulina! É esse. - gritou entiusiasmado. - Nóis tem que por as malas na porta da frente e dispois entra por tráis.
- Dexa que eu pago a passage pra todo mundo. Tem que passá na roleta primero.
- O Paulinho num pricisa pagá. Pode passá por baixo. - completou.

E o Paulinho não esperou mais nada, já foi logo passando na frente de todos e saiu rastejando por baixo da roleta. E o ônibus seguiu em direção ao Jardim Eulina para encontrar um novo sonho, uma nova vida, uma nova história para aquela família, que acabara de realizar um desejo de seu comandante: estavam na cidade grande.




O CACHORRO LILI



A casa que o Aparecido comprara em Campinas para morar com a família, não era a casa dos seus sonhos. Esquecer a sua casa de pau-a-pique que fora construída com as próprias mãos, não foi tarefa fácil, como também não estava sendo fácil se acostumar com o novo trabalho na produção de peças metalúrgicas, dentro de uma grande empresa.
Vendo seus filhos, todos vivendo uma nova vida, de trabalho e estudos, incentivava seu coração saudoso, a buscar forças e atenuar a sua tristeza de saudades do sítio, dos animais e das plantações que tanto amava. E quando saudade era grande, descrevia seus sentimentos nas folhas de um caderno, que guardava com carinho na gaveta da máquina “Vigorelli”, num canto do quarto de dormir.
A nova casa era construída nos fundos de um terreno, cercado com restos de madeira de construção, no Bairro do Jardim Eulina. Tinha três cômodos alinhados: a cozinha e sala e os quarto para o casal e os cinco filhos.
Um barraco de madeira construído do lado direito da casa, sem nenhum conforto, eram o quarto e a cozinha onde a Mirnadel e o Domingos viviam com seu pequeno Jonas. Um pouco acima, uma pequena cobertura de dois metros quadrados cercados de madeira com uma fossa sanitária, funcionava como privada, uma espécie de banheiro especial.
O bairro estava ainda começando a ser ocupado e se via poucas casas de alvenaria. Não havia nenhuma infra-estrutura, como água, esgoto ou transporte coletivo. A iluminação pública era precária, pois, a energia elétrica só estava disponível para utilização domiciliar. A água potável chegava em caminhões pipa ou nos ombros das pessoas, vinda de um poço artesiano que existia no num posto de gasolina.
Nos terrenos ainda vazios, a presença de tocos de eucaliptos indicava que antes de ser loteada, aquela área servia para reflorestamento. Perto dali ainda existia uma grande área de plantação de árvores que chamávamos de eucaliptal, onde a Prefeitura depositava lixos e entulhos.Muitas pessoas viviam daquele lugar a selecionar papelão, ferro, cobre e migalhas.
O Aparecido como já estava trabalhando, ajudou aos outros e logo todos foram se empregando: Rubens na Singer, Domingos na Braspuma e o Marcilio no Patrulheiro. As meninas arranjaram trabalho como doméstica e a Dona Erondina ficava a cuidar da casa, das roupas e da alimentação de todos.
Tudo era novidade e a descoberta das ruas, dos vizinhos, de novos amigos foi tornando a vida na grande cidade mais agradável. Até o cachorro Lili já fizera novos amigos e já se acostumara com o novo jeito de viver, sem as caças.
O Paulinho era o único que não se empregara, porém ficava a ajudar a Dona Erondina nos afazeres da casa. Muitas vezes, saia com um carrinho a recolher papelão e ferro velho nas ruas do bairro para ganhar uns trocados. Nos fins de semana podia engraxar sapatos no Bar do Seu Zé, também dava algum dinheiro.
O Marcilio entrou no Patrulheiro e logo começou a trabalhar na Braspuma, a mesma empresa em que o Domingos, marido da Mirnadel também trabalhava.
Naquele tempo, as empresas pequenas não ofereciam muitos benefícios, como plano de saúde, transporte, alimentação e outros. Os funcionários normalmente levavam as marmitas e a empresa oferecia um lugar para o aquecimento ou nem mesmo isso.
Paulinho ficara encarregado de levar a marmita do Marcílio.Todos os dias fazia o caminho de dois quilômetros de casa até a empresa. O cachorro Lili era seu companheiro. Correndo daqui, pulando dali, caminhava sempre na frente, e de vez em quando, parava para esperar. Era comum quando chegavam para atravessar a avenida, ele ficar junto e atravessar a avenida ao lado do menino.
Um dia na volta para casa, o Lili saiu apressado, latiu para um gato que passava, adiantou-se até avenida e se esqueceu de esperar o menino. Com a sua inexperiência de cidade, não foi capaz de ver um carro que vinha em alta velocidade. Foi o maior obstáculo de sua vida.

Aquele pequeno animal que não tinha medo de nada, encarava qualquer bicho do mato em suas caçadas no sítio, teve sua hora marcada naquele dia. Tanto o motorista do carro como o cachorro, tentaram evitar uma tragédia maior. Enquanto o motorista freou, o cachorro acelerou. Foi em vão.
O atropelamento não foi fatal, mas a sua coluna traseira ficou totalmente abalada. Saiu se arrastando pelo barranco afora, tentando encontrar com o Paulinho, que no desespero, atravessou correndo a pista, na tentativa de buscar o pequeno cão, quase sendo vitima também, completando aquela tragédia.
Já nos braços do menino, o cahorro seguiu o restante do caminho a latir de dor junto aos soluços molhados de lágrimas do menino, que mal podia com o peso do animal que carregava. Aqui e ali alguém perguntava o que tinha acontecido e a resposta sempre era a mesma:

- Eu acho que o meu cachorrinho vai morrê. Eu preciso levá ele pra casa e dá remédio pra ele.

Os dias foram de muita tristeza para Paulinho e o Marcilio, pois amavam muito aquele cachorro. Os remédios eram ministrados com a maior atenção e carinho. A compressa de Santa Maria,a novalgina para a dor, a limpeza, a água, o alimento, o abraço . Porém tudo só fez adiar a sua já esperada partida. Muito choro e emoção marcaram aquele dia para sempre.
Com a morte do Lili, iniciou-se uma nova fase na vida do Paulinho. .O cultivo de novas amizades trouxe uma nova realidade para a sua vida. O término do curso ginasial, o trabalho no Patrulheiro e a responsabilidade de contribuinte do lar, deram um novo caminho a traçar, um caminho de personalidade e caráter. Dos sonhos de infância, ficaram somente as lembranças.











O ENGRAXATE


O dia amanheceu claro e ensolarado. Campinas ostentava sempre um clima bom, apesar dos ventos gelados no inverno. Nem todos haviam se levantado naquele domingo, pois era justo o descanso até mais tarde.
O café já estava pronto e os biscoitos de polvilho em forma de anéis posavam sobre a mesa, esperando serem devorados.

- Paulinho, vem tomar café , sinão vai esfriá. - Era a mãe fazendo o seu papel de protetora e preocupada com a alimentação e saúde daquele filho ainda pequeno.

Naquela família, o caçula era o único que ainda gozava do título de estudante, sem nenhuma renda formal. Mesmo assim era cobrado por ter participação na mesa e não nas despesas.
Aquele menino, ainda franzino e tímido, sentou-se à mesa e com os cotovelos sobre a mesa, apoiou o queixo, como se pensasse na vida e no futuro. Molhou o biscoito de polvilho na xícara de café preto (sem leite) e comeu como se fosse o melhor brioche da confeitaria.
Aquele biscoito era o melhor do mundo. A mãe o fazia sempre, era uma receita muito antiga. Quando morava no sítio ele acompanhava todo o processo de produção daquela delícia.
Olhando aquele biscoito feito no forno a gás, com polvilho comprado no mercado pensou que, outrora tinha outros formatos e era feito em forno de lenha e com o polvilho feito e processado artesanalmente pela própria família.

O polvilho era é feito da mandioca que era plantada na roça do lado de cima da casa. A colheita era feita com um enxadão ou enxada. O pé da planta era raspado e descobertas as raízes, depois eram quebradas as ramas e arrancadas devagar, por meio de pequenos puxões, com o cuidado para não quebrar.
A pratica da colheita era tanta que poucas vezes era necessário usar o enxadão para tirar as raízes desprendidas do pé que ficava na terra.
Depois de separadas e transportadas para a varanda, as raízes eram descascadas e lavadas. Lá também funcionava uma espécie de “casa de farinha”, constituída de um molinete fabricado com catracas e rodas de bicicleta. O sistema funcionava com a transmissão dos pedais para a roda sem o pneu através da corrente e dali transferido para um pequeno rolete construído em madeira envolto com pedaços de serra “tico-tico”.
As mandiocas já descascadas e limpas eram empurradas uma a uma no molinete em movimento com muito cuidado, pois as serras atingiam uma velocidade de giro muito grande por causa da transmissão. Embaixo do molinete ficava um recipiente para receber a “massa” da mandioca já ralada que depois era transportada para uma espécie de prensa .
A prensa era preparada num sistema de caixa construída dotada de pranchas de madeiras com pequenos orifícios na superfície. A tampa da caixa era mecanizada com um sistema de alavanca que, ao ser acionada, pressionava a massa de dentro da caixa para baixo fazendo com que toda a água residual (chamada de soro), existente na massa da mandioca, fosse expelida pelos orifícios. Todo o líquido proveniente dos orifícios era recolhido em vasilhas (bacias ou baldes) e, depois de coado em pano fino, era deixado descansar para decantação por um período de tempo, (normalmente, a noite toda).
O produto já decantado ficava compactado no fundo da vasilha e o soro residual era descartado. Depois de retirado das vasilhas, o produto era colocado para secar ao sol. Este produto era o famoso “polvilho azedo” que depois de peneirado e armazenado, se transformaria em deliciosos subprodutos no forno a lenha.
O polpa da mandioca que ficava na caixa após a prensagem, tinha outro destino: a fabricação da farinha.
Ao lado do molinete ficava o forno onde era torrada a farinha. A polpa era peneirada e colocada em tachos planos, devidamente preparados sobre fornalhas de braseiro. Com uma espécie de “rodo” feito de madeira, a polpa peneirada era movimentada de um lado para outro com braçadas rápidas, com a preocupação de não deixar queimar e somente “torrar” a farinha.
O polvilho era o subproduto da mandioca preferido da Erondina, que, com mãos de fada, o transformava em biscoitos e sequilhos muito saborosos.

E eram daqueles biscoitos que o Paulinho saboreava no café da manhã daquele domingo...

- Mamãe, porque a senhora não faz mais aqueles biscoitos de cavalinhos e de gatinhos?- perguntou, olhando num pedaço de biscoito cortado em meio anel.
- Num dá tempo e num tem forma grande pra pôr. Come assim memo, num muda o gosto não. - respondeu Erondina, mexendo numa lata em que guardava o feijão em grãos, separando uma porção sobre a mesa, para escolher, que em seguida seria cozido para o almoço do domingo.

Paulinho acabou de tomar o café, caminhou pela cozinha até o quarto e num cantinho pegou uma caixa triangular com um suporte em forma de sola de sapato, feita em madeira rústica sem pintura que o pai havia preparado para ele. Aquela caixa era uma das atividades que exercia para ajudar nas despesas da casa. Abriu a caixa, conferiu: preto, marrom, incolor, escova, esponja, spray de água, pano marrom, pano preto. Precisava de uma escova de dente usada para engraxar a sola e os cantos de costura dos sapatos masculinos.

- Mamãe, perdi aquela escova de dentes que a sinhora mi deu. Será que tem outra pra sinhora mi dá? pediu ainda do quarto.
- Num sei não, parece que o Parcido jogô a dele fora.Dexa eu vê se num tem arguma no armário do banhero.- respondeu a mãe levantando seguindo para o banheiro. Aquí, ó. Tem uma aqui que ocê pode usá.
- Brigado, mamãe! - Colocou dentro da caixa e foi saindo:
- Bença mamãe.
- Deus abençoe. Vai com Deus.

A caixa nas costas transformava aquele menino num trabalhador. Subiu a rua, dobrou a esquina e já chegou no Bar do Seu Zé, o ponto de encontro com o Luizinho, seu colega de trabalho.

- Qué engraxar seu Oliveira? Eu dô o maior capricho pro senhor!- e já conquistou seu primeiro freguês.

O período da manhã não foi bom. O seu companheiro Luizinho teve mais sorte: um homem veio de bicicleta e levou-o para engraxar em casa. Paulinho não entendeu porque o homem preferiu levar o Luizinho.
Ele talvez não iria, pois a recomendação da mãe era que ele não fosse para outro lugar sem avisar. O homem disse que tinha mais de quatro pares pra engraxar. O menino montou contente na garupa da bicicleta, equilibrando a caixa de engraxar na costa. Era até capaz que não voltasse depois do almoço.

- Tchau! O homem disse que mora aqui perto, depois de eu armoçá eu vorto, se a minha mãe dexá. - Disse o amigo já na bicicleta em movimento.

Durante a tarde trabalhou sozinho. O resultado foi bem melhor: até o seu Cândido engraxou.
Já era tarde quando o resolveu ir embora. Ninguém mais queria engraxar. E o Luizinho não voltou mesmo depois do almoço. O pai veio procurá-lo pra almoçar, mas soube do serviço a domicilio e aquietou-se. Talvez a família do homem da bicicleta tivesse lhe oferecido um prato de comida, e ele resolvera ficar para trabalhar mais um pouco para os vizinhos.

Com a caixa nas costas, Paulinho fez o caminho de volta. No seu rosto pairava um sorriso de satisfação. Com os olhos brilhantes de alegria, apanhou o maço de notas no bolso do calção e pôs-se a contar baixinho o resultado da féria do dia:

- 100, 200, 300 cruzeiros.

Quando virou a esquina da rua trinta e quatro já viu o pai do Luizinho no portão de sua casa. Achou um pouco estranho, mas continuou o seu caminho tranquilo a contar as notas. - 600, 800, 900...!.
Nem havia chegado em casa direito e home veio ao seu encontro e perguntou preocupado:

- Você viu o Luizinho? Sabe se ele voltou pro Bar do Seu Zé? Ele não veio pra casa até agora....Ele não sabia de nada. Disse apenas que ele não voltara mesmo ao local de trabalho e que trabalhara sozinho a tarde toda. Até exibiu o pacote de notas que ganhara.
O pai estava transtornado, nunca acontecera tal fato. O Luizinho sempre fora um menino obediente, nunca ficara assim até tão tarde fora de casa sem avisar.

O Aparecido e toda a sua a família se colocou à disposição para ajudar no que fosse preciso para dar o paradeiro do Luizinho. A Erondina foi até a casa dele e tentou acalmar a mãe que já começara a se desesperar.
Para o ele aquela preocupação toda não era necessária, pois daqui a pouco o Luizinho apareceria com a sua caixa de engraxar e com os bolsos cheios de nota, assim como ele estava. Foi até o fogão, pegou um pedaço de bolo saiu comendo para fora. Quando o viu todo mundo veio ao seu encontro:

- Como era esse home que levô ele de bicicreta? pra que lado ele foi? Ele falô onde é que ele mora? Que hora era quando ele foi? Como é que ele tava vistido? Sabe se ele foi lá pras banda de baxo dos barraco?

O Paulinho não sabia qual pergunta respondia primeiro, parecia que ele que era o culpado do sumiço do Luizinho. Mas a coisa parecia séria, pois a mãe dele chorava sem parar.
Ficaram a noite toda procurando o menino e nenhuma notícia foi dada. No outro dia a polícia foi acionada e as buscas foram aumentadas.
Já era tarde do outro dia quando encontraram o Luizinho. Ele estava no meio do Eucaliptal, morto: o homem da bicicleta abusou, estuprou e queimou o Luizinho.

- Maldade!!! Monstro!!!

O mundo desabou. O coração do daquele menino se quebrou em pedaços. Era seu melhor amigo.
Depois de algum tempo encontraram um homem que confessou o crime. Saiu na manchete do jornal daquele dia: “O monstro do Jardim Eulina foi preso ontem”.
O Aparecido e a Erondina proibiram o Paulinho de sair para engraxar no bar do Seu Zé.

- Ocê catano argum ferro veio, papelão e cobre já tá bão. Dizia a mãe preocupada. - Daqui a pôco ocê entra tamem no patrulhero e vai trabaiá numa firma. É melhor do que acontecê arguma coisa ruim que nem aconteceu c'esse menino aí.

E foi assim. O Paulinho seguiu o mesmo caminho do Marcilio que já estava trabalhando no Patrulheiro numa firma chamada Braspuma, e logo foi trabalhar numa fábrica de lustres.

E a caixa de engraxar sapatos deve estar até hoje escondida num canto do quarto, empoeirada de tristeza, e despedaçada nas recordações de um tempo que ficou para trás.









A CASA CAIU!



Era mês de janeiro, tempo de férias escolares, e o Aparecido indo para o trabalho, e no ônibus, comentava com o Sr. José Felix, um companheiro e amigo, sobre o seu filho caçula que estava cursando o SENAI como “Ajustador Mecânico”.

- Pois é, Zé Felix, esse mês ele tá fazeno o estágio lá na ferramentaria. Vai sê bão, se ele consegui uma vaga dispois que terminá. O dinherim que ele ganha, ocê vê, já me ajuda nas dispesa.
- É, vai sê bão, Seu Parecido, vai sê bão. - Concordou o Sr. José Felix. - Eu que tenho duas fia muié, sei como que é as despesa. Ocê é que tem sorte de tê os fio que tem. Deve de dá graças a Deus.
- Ocê num sabe, Zé, mais eu dô graças a Deus todo dia, quando eu vejo a minha casa levantada, com a laje pronta, com a ajuda dóceis, que são meus amigo, e os meus fio tudo estudano, eu fico muito agradecido pra Deus.- Falou Aparecido emocionado. Agora com o Paulinho no SENAI e o Marcilio tamém estudano lá na outra escola que ele arrumô, eu fico mais tranqüilo ainda.- completou. (O Marcilio estudava no SENAC).
- Eu sei Parecido, eu sei. Eu lembro bem de quando ocê perdeu a metade da tua casa. Foi um “perereco” danado, num foi? Comentou o Sr. José Felix. Aquela fossa mar feita te deu uma grande dor de cabeça...
- Eu me lembro sim Zé, se me lembro...

A história da casa sempre era contada como uma tragédia. Foi num tempo de muita chuva, que a casa de fundo, que o Aparecido comprara quando se mudou para Campinas, teve uma parte desmoronada por causa de uma fossa, que o antigo morador construiu ao lado da parede lateral. Com o excesso de umidade, a terra se acomodou e a fossa afundou levando parte da casa, a que servia como quarto de dormir da família. Foi Sorte que aconteceu durante o dia, e ninguém estava no cômodo..
Com a solidariedade dos vizinhos e dos amigos, a parte da casa foi reconstruída em madeira usada (restos de construção), e serviu para abrigar a família enquanto a “casa da frente” feita de alvenaria estava sendo construída em regime de mutirão. Aparecido teve que adquirir novas qualificações: alem de auxiliar de produção ele era agora também aprendiz de pedreiro.
O Aparecido também se lembrava de que quando o Paulinho entrou no SENAI, há um ano mais ou menos, ele ainda era inexperiente e teve que se adaptar em muitas coisas da sua vida.
Foi um começo de descobertas. Havia naquela escola um diferencial: não estudavam meninas. Os alunos eram quase todos, filhos de trabalhadores das fábricas, e com idade de quatorze a dezessete anos.
A primeira dificuldade da escola, não fora as matérias ou as máquinas da oficina, mas o relacionamento com os colegas, que não perdoavam apelidos e distrações. Por ser tímido e sem experiências da cidade, o menino, ainda “fiapo” (como eram chamados os novatos da escola) se tornou motivo de deboche e rotulado de “bichinha”, de “bobão” e outros termos que denegriam sua conduta e o seu caráter. Ele não era um problema único na escola.
Drogas eram oferecidas aos garotos, que a usavam para se afirmarem como machos . E aqueles que não participavam do grupo eram tachados de “mané” e redicularizados.
Sua formação, sempre o conduzia a dizer não vício de fumar ou ingerir algum tipo de droga, apesar de que o cigarro e a maconha corriam soltos nas mãos da maioria dos estudantes.
A dúvida sempre o perseguia:

- Será que eu tenho algum problema? Eu sou realmente bicha? Por que eu tenho que fumar? - Estas questões martelavam sua cabeça todo tempo. Aí é que eles vão ficar mais bravo comigo. E se eles quiserem me pegar lá fora? O quê que eu faço? - Perguntou prevendo uma tragédia.

Nas aulas de educação física quando todos ficavam nus para tomar banho, a dificuldade era maior. Muitas vezes um choro sufocado tentava se esvair mas era contido pela vergonha e pela insegurança .O assistente social Sr. Moacir, percebendo sua dispersão chamou-o para conversar e fez uma proposta:

- Você vai cuidar da biblioteca do Centro Cívico. Lá estão guardados os jogos de mesas como o Ping Pong, Xadrez e Damas. Nos períodos da tarde, você fica com as chaves. O controle vai ficar por sua conta. Quem desrespeitar as normas ou a você, não terá autorização para usar os livros ou os jogos.

O jovem ficou assustado.

- Mas, Seu Moacir, não vai ser pior? Se eu não der os jogos pra eles, aí é que eles vão ficar mais bravo comigo. E se eles quiserem me pegar lá fora? O quê que eu faço? – Perguntou.
- Aí você me fala. respondeu o Sr. Moacir. - Se acontecer uma coisa destas, o pessoal sabe: é expulsão na certa. Da escola e da empresa em que ele é conveniado. Eles não vão se arriscar, eu tenho certeza! Pode ficar tranqüilo. Completou.
- Então tá certo. Amanhã eu já posso começar?

No outro dia a ansiedade já o deixava estressado. Cada lembrança de que teria que “tomar conta” da biblioteca era um calafrio só. Seu coração batia mais apressado e o suor corria pela sua fronte.
Mas a experiência foi boa. Estando trabalhando na biblioteca, o menino começou a se interessar por livros de romances de José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato e outros. E começou também a exigir maior respeito por sua pessoa.
Não demorou muito, e o jovem inseguro se tornou um líder. Não dos mais espertos, mas daqueles que tinham boas intenções para com a escola, e para com a empresa a quem era conveniados. O resultado desta liderança culminou na sua indicação para ser o tesoureiro de uma chapa para concorrer para a diretoria do Centro Cívico da escola. A Chapa Jóia era composta também pelo Adamastor como presidente, o Danilo como vice e o José Luis como secretário.
O Centro Cívico era também responsável pela promoção de Jogos e atividades extraclasse, bem como pela formação matinal e hasteamento da Bandeira Nacional. O relacionamento com a diretoria e professores valorizava ainda mais a auto-estima do jovem, que aos poucos foi se tornando mais seguro e mais autêntico.

- É, mais nem tudo foi maravilha não! - lembrava o Aparecido. - O Paulinho tomou outro dia, uma atitude que me deixou em situação muito difíci...- lembrava o Aparecido.

Foi no final daquele ano, antes de sair de férias, uma idéia passou pela cabeça do menino: Ele queria, alem de estudar no SENAI, fazer também o curso Colegial:

- Eu acho que estou perdendo tempo. Vou falar com a mamãe para eu fazer o Colegial. - pensou.

Na verdade, o SENAI naquele tempo exigia somente o nível primário, isto é, quarta série completa e no final dava o certificado de conclusão do ginásio (hoje nível fundamental).
Erondina não foi contra a sua idéia, mas esta não foi bem aceita pelo Aparecido que foi direto ao assunto:

- Vai terminá primeiro o SENAI e trabaiá, dispois a gente vê isso.

Foi uma tristeza. Mas não fraquejou na sua idéia, de voltar a estudar no colégio: Tomou uma atitude: organizou os documentos e fez a inscrição no “vestibulinho” no Colégio Aníbal de Freitas que era muito concorrido na época. Fez as provas e passou.
Depois dos resultados, tinha o prazo de dez dias para fazer a matrícula, e precisava da assinatura do pai ou da mãe. A dona Erondina ainda não sabia assinar o nome.

- E agora, como é que eu vou fazer? pensou. - Eu sei que ele não vai concordar.

Conversou com a Erondina, e tomou uma grande e arriscada decisão: pegou a ficha de matrícula que o pai deveria assinar e assinou por ele, se matriculando no Colégio Estadual Prof. Aníbal de Freitas no curso de Ciências Físicas e Biológicas.
Com a anuência da Erondina, o Aparecido só ficou sabendo depois do fato concretizado. Foi uma sessão e tanto de falatório e sermão. Não teve surra, porque a mãe não deixou, mas houve tentativa. No final, tudo deu certo, e o Aparecido concordou, com algumas condições:

- Tá certo. Mais eu num vô gastá nenhum tostão com material nem uniforme. Eu num vô memo.
- Fica tranquilo Parcido. Defendeu a mãe. - Ele já ganha o dinherinho dele e deve sobrá até um pôco. Eu acho até que vai sê bão pra ele. Si pode estudá porque num dexá, num é verdade?

O ônibus chegou à fábrica. O Parecido desceu primeiro e esperou o Paulinho, que viajava também naquele transporte. Abraçou-o pelo seu lado esquerdo, caminhou um pouco com ele em silencio e depois parou. Fitou-o diretamente nos olhos e disse:

- Parabéns, filho. Deus o abençoe! Deus o abençoe.! Aparecido sentiu os seus olhos se molharem, bateu de leve nas costas do Paulinho e seguiu em frente para o seu departamento de trabalho.

O Jovem Paulinho não entendeu nada daquela situação, pois o Aparecido dificilmente abraçava os filhos desta forma. Ele dizia que os filhos devem ser abraçados e amados enquanto dormem, pois, o pai não pode se mostrar fraco diante deles e perder a autoridade.
Daquele dia em diante, Paulinho descobrira muitas coisas novas e diferentes acontecendo em sua vida. Pulsava em seu coração, o desejo de fazer algo novo, para que ele fosse visto e valorizado. Ganhara a primeira chave de sua vida. Era a adolescência que chegava e uma nova história seria contada.




A CORRIDA DO SONHO



- Você pode fazer o NPOR- falou um professor de desenho do SENAI.- Você tendo o colegial poderá ser tenente e trabalhar no exército. Eu sou tenente da reserva. Só não continuei na farda porque não quis. Eu preferi dar aulas.

O professor falava com muito entusiasmo. Até mostrou uma identidade de oficial do exército que guardava com muito orgulho na carteira. O Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva, NPOR, era um escola de formação de oficiais de segunda classe para suprir as necessidades das forças armadas no treinamento de soldados para as fileiras militares. Em Campinas, havia um NPOR junto ao 28º Batalhão de Infantaria Blindado, com capacidade para 30 vagas.
Aquela informação deixou o jovem Paulinho com os olhos cheios de brilho, era como se alguém tivesse indicado o caminho de sua indecisão. Lembrou do seu sonho de ser militar quando ainda muito pequeno, numa parada militar, na cidade onde nascera.

- Mas como é que a gente faz. - interessou-se o Paulinho. - Tem que fazer inscrição?
- Não.- respondeu o professor. - Quando você for se alistar você diz que quer fazer o NPOR. Você já vai direto. Tem uns testes físicos para fazer. Só isso! Completou.

Ainda com dezesseis anos Paulinho já começou a sonhar novamente por uma vida de caserna, dentro de uma instituição militar. Ainda era possível ser um oficial, pois perdera o prazo, no tempo de se alistar na Escola Preparatória de Cadetes. Teria uma farda bonita e o respeito de todos, seria um militar.
Aquela idéia de servir nas bases do Exército pelo NPOR , foi guardada somente para ele. Depois de terminar o curso do SENAI, fez um estágio na fábrica, mas perdeu a chance do emprego efetivo, pois as três vagas existentes foram reservadas aos filhos de diretores e encarregados.
No ano de 1976 terminaria o curso colegial, e neste mesmo ano que completara a idade de dezoito anos, fora chamado para se alistar no serviço militar.
Com toda a documentação na mão, foi bem direto, quando lhe perguntaram, se queria servir ao Exército Brasileiro:

- Quero sim e quero ser voluntário para o NPOR.- Falou com muita segurança para o sargento que atendia na recepção.

O homem olhou para seu rosto, como se perguntasse alguma coisa, e, mais que depressa ele respondeu:

- É que eu estou fazendo o terceiro ano do colegial. Está aqui a declaração da escola. falou mostrando o documento que comprovava a freqüência no seu último ano do colegial, o mesmo que o ensino médio de hoje.

Pronto. Estava feito. O sargento nem fez mais perguntas, entregou a ele o documento chamado de CAM, Certificado de Alistamento Militar, com o carimbo e com o encaminhamento: NPOR.

Testes de conhecimentos gerais classificavam para os testes físicos que eram realizados no próprio quartel.

A boa formação escolar deram resultados positivos ao jovem, que fora convocado dentre os sessenta para o teste decisivo, e o levaria direto para os braços da caserna.
Finalmente chegou o dia marcado. A importância daqueles testes replicava diretamente na freqüência com que batia o seu coração. O sonho de menino brilhava nos olhos daquele jovem e a cada movimento dos soldados, sargentos e tenentes, alterava também a sua pulsação.
Monitores de planilha nas mãos: primeiramente fariam os abdominais, depois as barras fixas e finalmente a corrida de doze minutos, o famoso “Teste de Cooper”.

- Vinte e uma, vinte.. e ..duas, vinte... e .. três, vinte e....quatro..., vinte ...e cinco...não agüento mais.

As forças limitadas de um jovem que não teve tempo para praticar nenhum tipo de esporte, deixou os valores negativos nesta prova, que consistia em realizar pelo menos trinta exercícios completos para conquistar os dez pontos.

- Agora as barras: pode subir. - Cada barra valia dez pontos.
- Uma, duas, treeeis.., quaaatro, cinnnn. Não dá mais.!

Conseguira 40 pontos. Para conseguir os cinqüenta pontos necessários para se classificar era preciso conquistar os pontos da corrida.
O “Teste de Cooper” consiste numa corrida de doze minutos para uma distancia mínima em metros de acordo com a faixa etária e as condições físicas da pessoa testada. A exigência para conseguir os 10 pontos para aquele teste era que se atingisse no mínimo 2900 metros.
A prova seria realizada na “Pista de atletismo” dos soldados e foi para lá que todos se encaminharam.

Seria dado um tiro de festim para o inicio da prova e quando faltasse um minuto, isto é, aos onze minutos de prova, um novo tiro seria dado e ao final seria dada uma rajada de três tiros.

- Preparados para a largada, todos posicionados. - gritava o tenente.

O coração parecia que ia saltar pela garganta. A orientação foi dada pelo sargento: todos vão sair juntos, não precisa dar o máximo, encontre o ritmo ideal e siga em frente.
O tiro foi dado. As primeiras expectativas foram boas, mas aos poucos o jovem foi ficando entre os últimos, pois não conseguira manter o ritmo inicial. A pista era sinalizada a cada 100 metros e assim ficava fácil acompanhar cada distancia percorrida.
Quando o tiro de onze minutos fora disparado, ele estava há uma pequena distancia do marco de 2700 metros. Era o momento de dar tudo. Aumentou o ritmo e partiu em busca de seu sonho. Ele sabia que por menos de 2900 não conseguiria ser aprovado. Muitos dos colegas participantes já haviam parado pelo caminho, mas muitos outros continuavam em sua frente. O seu objetivo era atingir 3000 metros, tinha menos de um minuto. Ultrapassou a marca de 2800 metros, o seu coração acelerava o seu pensamento:

-Vou conseguir. - pensava - Vou conseguir - E o objetivo parecia maior que as forças físicas e a exigência excessiva nos músculos fez faltar oxigenação no cérebro e de repente tudo ficou escuro.

A corrida seguiu por alguns metros às cegas. Uma, duas, três passadas e então tudo se apagou de vez.
De repente os olhos se abriram, um vulto branco surgiu na enfermaria da Companhia de Serviço , era a voz do capitão médico :

- Parabéns soldado, você conseguiu.

Um sorriso singelo ficou entreaberto nos lábios cansados daquele jovem, que literalmente correra atrás do seu sonho.

- Graças a Deus, como diria o Aparecido. - Graças a Deus.




A ENGENHARIA FINAL



Estamos no ano de 1987, no mês de setembro, uma grande festa está planejada para acontecer: o Aparecido vai comemorar 39 anos de casado.

- Temos que convidar todo mundo. O Cumpade Joaquim diz que vem com a Cumade Tereza e vai trazer a carne do churrasco. - falou Aparecido com entusiasmo. Vai ser um festão lá em casa.

Nesta época, todos os filhos já estavam casados e a família toda já somava vinte e sete pessoas com seis filhos, dez netos, um bisneto e dez agregados.

- Sabe, Seu João, a gente num sabe quanto tempo vai viver, então é preciso comemorar os momentos da gente. continuava falando com o seu colega de serviço, num momento de descontração durante o almoço na fábrica. A minha vida já esta ganha, todos os filhos estão encaminhados, graças a Deus, e agora eu quero trabalhar enquanto eu puder e viver a vida. completava.
- É isto aí, Seu Aparecido, espero que o senhor me convide pra esta grande festa. - comentou o João, batendo nas costas do colega de serviço muito querido.
- E vai ser João, e vai ser. Continuou o Aparecido. - Eu vou dizer, pra você, eu tenho seis filhos, todos tiveram a chance de estudar. Quando eu vim pra Campinas, o meu caçula tinha onze pra doze anos e já tava fazendo o ginásio. As meninas arranjaram namorado e não quiseram continuar estudando, o Rubens fez ajustagem no SENAI e foi trabalhar na BOSCH, agora ele comprou um negócio de mercado lá em Fernandópolis, mais ta vivendo bem, e os dois menores continuaram a estudar até alem do que eu imaginava.

- Estudar é bom, Seu Aparecido. Veja nós aqui, trabalhando num serviço pesado na manutenção, se nós tivesse estudado...- comentou o João.
- Pois então, como eu tava te falando, o Marcilio se formou pra economista e está trabalhando na Bendix e o Paulinho , esse fez uma loucura: ele estudou pra ENGENHEIRO INDUSTRIAL. Seu João, eu tenho um filho ENGENHEIRO! Quando eu podia imaginar que com os meus dois anos de escola, fosse ter um filho doutor engenheiro?- Terminou emocionado o Aparecido.
- Pois é, Seu Aparecido, o que é a vida, não é verdade? comentava o João, abraçando o Aparecido. Olha, vamos, o pessoal já vai bater o cartão, vamos entrar.
E o Aparecido seguiu para o seu local de trabalho emocionado. Ele se lembrava do dia em que terminou de construir a sua casa no sitio, junto com todos os companheiros e, e com a mesma emoção que sentia agora, saudava a sua obra concluída com o grito:
- Quem disse que nóis num semo engenhero. Óia só que beleza! Nóis semo engenheiro sim. ENGENHEIROS DE PAU A PIQUE!

E a festa foi um sucesso! Estavam presentes, todos os irmãos do Aparecido, menos a Laura que falecera, veio também a Tereza , irmã da Erondina e todos os familiares, vizinhos e amigos. Foi feita até uma faixa de congratulações ao casal aniversariante.
O Joaquim, marido da Tereza, cuidava da churrasqueira e uma dupla sertaneja, cuidava de alegrar o ambiente.
Na hora do bolo, um momento de homenagem, e o Paulinho pediu a palavra para ler uma mensagem, que ele havia escrito para marcar a data. Foi um momento de muita emoção para todos.



Assim estava escrito:

“Papai e Mamãe:

Há quarenta anos, portando somente a coragem e a vontade de vencer, Papai e Mamãe se uniram em matrimônio para iniciar esta família.
Embrenharam-se nos campos e com muito suor do trabalho, umedeceram os tempos áridos e aqueceram as geleiras da vida.
Construíram valores. Edificaram amores. Geraram senhoras e senhores.
Hoje, nas lembranças de muitas histórias, ficamos conhecendo um pouco do que foi para este casal, o prosperar da vida. E a cada emoção, de cada fato narrado, vemos o que a vida lhes ensinou e o que o tempo lhes tirou.
Estamos aqui, festejantes e alegres, todos os filhos, filhos dos filhos e os filhos dos filhos dos filhos, sentindo o quanto é importante para eles, Papai e Mamãe, esta comemoração. É a concretização da vitória. Vitória contra o tempo. Vitória da luta contra a própria vida, que infortunada às vezes, transforma os sonhos da noite em pesadelos do cotidiano
Vamos lá Papai, Mamãe, Vovô e Vovó. Vamos comemorar com sorrisos estes momentos porque eles são raros. Vamos vivê-los intensamente! Vamos lá...”
Uma salva de palma, fechou aquele momento em que todos os filhos, sem exceção, se emocionaram às lagrimas.

E o Aparecido, também emocionado, agradeceu:

- Muito Obrigado. Deus abençoe a todos.

No mês de abril de 1991, o Aparecido foi a casa do Paulinho numa visita, e também para comunicar uma viagem que faria a Fernandópolis em férias. Depois de conversar sobre várias coisas, ele falou das dificuldades que estava tendo para administrar a sua vida emocional. Falou que, depois que todos os filhos se casaram, ficou mais difícil, pois se sentia sozinho e sem motivação.

- Pois é, Paulinho, eu gosto do jeito da sua mulher: uma pessoa independente, sabe dirigir carro, é professora. Se pricisá numa hora de aperto ela sabe se virá. Graças a Deus que eu tenho o meu carro, quando eu quero ver ocêis, eu convido a Erondina, se ela num quisé vim, não tem problema, eu venho sozinho memo. Acho que ela tá ficano é cansada de sair junto comigo.

- Não é por isso não, papai. É que ela tem os serviço de casa, as coisas pra arrumar, ela sabe que a gente sempre vai lá ver ela, mas se o senhor tiver paciência, com certeza tudo vai se acertar. - falou o Paulinho, tentando acalmar o pai.

- Eu vô lá pra Fernandópolis na semana que vem. Vô fica uns quinze dias. Eu vou de carro porque eu quero visitá o povo tudo de lá. De carro a gente tem mais liberdade, não precisa depender de ninguém pra levá a gente pra lugar nenhum.

- Tá certo. - concordou o Paulinho. Se o senhor precisar de algum dinheiro, eu tenho aquele seu dinheiro guardado, é só pegar no Banco...

- Num pricisa não. Eu já planejei tudo. O dinheiro que eu tenho é suficiente. Eu já vou indo, se você quer que eu levo alguma noticia, eu vô viajar na segunda feira de manhã.

- Leva o meu abraço a todos. Fala pra eles que logo nós vamos passear por lá também.

O Aparecido foi embora, era uma tarde de sábado, na segunda feira ele viajou. Depois de passear durante a semana na casa dos amigos e sobrinhos, foi almoçar no sitio onde mora a Rosa, filha do Paulo. Durante o almoço, não se sentiu bem e foi levado para o hospital da Santa Casa de Fernandópolis. Não houve tempo de socorro. E lá mesmo, perto de sua cidade natal, foi a sua despedida.

Uma lágrima rolou nos olhos do Paulinho ao se despedir do grande amigo:

- Vai com Deus , papai. Vá construir no céu a sua morada. E que ela seja digna do grande engenheiro que você é. Vai com Deus.


APENDICES

HOMENAGENS ESPECIAIS




AO MEU DEUS

Que amou-me o suficiente e permitiu que eu vivesse para ver os meus filhos crescerem e então contar-lhes as minhas histórias.

Que concedeu-me o suficiente para transformar o meu pequeno ser em uma plantação viçosa e pronta pra colheita.



AOS MEUS PAIS

Que deram-me segurança e conduziram-me por caminhos iluminados e claros, e embelezaram com flores e sorrisos os meus momentos de dúvidas e ansiedades.



À MINHA ESPOSA



Que fez-me repensar a vida de uma forma reta e organizada, conduzindo-me ao conhecimento do mundo na visão política e social.

Que fez-me renascer, quando o infinito chegou próximo e a esperança esvaneceu.

Que fez-me viver o amor de forma intensa e infinita.



AOS MEUS FILHOS

Que me proporcionaram a alegria de vê-los tornarem-se homens de bem.




Anotações encontradas



“...E tudo foi se transformando numa grande galeria. Uma galeria que ficou marcado nos corações daquela família e nos versos que rabiscava nas folhas soltas de caderno que sobrava das lições dos meninos...”


O ANDARILHO


Poema feito por Aparecido, num momento de inspiração poética em 1983, que relata talvez um sentimento oculto ou uma história que alguém lhe contou.
Reescrito a seguir com texto digitado, com algumas correções, sem no entanto mudar o contexto.



O ANDARILHO
Aparecido C. Freitas



Eu sou um andarilho , que vivo aqui neste mundo
Ninguém não sabe quem sou, um malandro ou vagabundo
Com meu saco nas costas, todos me vêm passando
Ninguém sabe dizer ao certo, se estou indo ou estou voltando

Ninguém sabe o meu destino, nem eu mesmo sei aonde vou
Andando pra lá e pra cá, ninguém sabe quem eu sou
Não tenho parente nem amigo, não tenho lar e nem morada
Tenho as noites e os dias tristes, caminhando nas estradas

Não tenho pão nem dinheiro, nada eu posso comprar
Se eu como algum lanchinho, é porque alguém vem me dar
Eu só tenho a noite e o dia, e as estradas que andei
Também os momentos tristes, que na vida eu já passei

Todos me olham quando passo, mas por ninguém sou amado
Com a minha roupa tão suja, e meu cabelo despenteado
Os meus pés sujos no chão, o meu olhar no vazio
Sou tratado na multidão, como um cãozinho vadio.

Ninguém sabe a razão, do meu grande sofrimento
De eu viver neste abandono, que eu passo neste momento
Dormindo às margens da estrada, sem cobertor nem colchão
Eu não tenho nem esteira, pra forrar o solo do chão.


Pois o meu olhar tristonho, relembrando o meu passado
Só a saudade resta agora , do tempo que eu fui amado
Quem me vê assim tristonho, não sabe o que estou passando
Pois já faz muito tempo, que meu coração está chorando


A mulher que eu amei, com outro homem fugiu
Ao voltar do trabalho um dia, meu lar estava vazio
Nosso juramento, nossa aliança, tudo ali ficou desfeito,
Por sou um andarilho, esfarrapado deste jeito,


Até meu filho querido, nunca mais eu pude ver
Procurei com todo mundo, mas ninguém quis me dizer
Me embrenhei na noite escura, procurando alguém pra contar
Aonde estava o meu filho, onde será que foi parar

Adormeci daquele jeito, no meio da noite fria
Sonhando com a tragédia, só acordei no outro dia
Virei um homem sem rumo, sou o o trem que sai do trilho
Só escuto dizer onde passo,ali vai um andarilho



CASINHA DE MADEIRA



Poesia escrita por Aparecido contando um pouco de sua história, com um pouco de fantasia, mas com sentimento verdadeiro.
Reescrito a seguir com texto digitado, com algumas correções, sem no entanto mudar o contexto.


CASINHA DE MADEIRA



Eu não sou trovador, mas de tudo que passou
Pra vocês eu vô contá, quando eu era bem pequeno
Eu me lembro mais ou menos, daquele tempo pra cá.

Eu morava em uma casinha, ela era bem feitinha
Toda feita de madeira, o papai era carreiro
De um grande fazendeiro, que tinha naquelas beira

Não existia carretão, não tinha nem caminhão
pra puxar os cereais, naquele tempo que foi
Só havia os carro-de-boi, que hoje não existe mais.

Nóis era quatro irmãos, de muita boa união
Um irmão já ia na escola, me lembro como se fosse agora
E eu ficava com a irmã, todos os dia de manhã.

Me lembro que toda tarde, quando apertava a saudade
Nóis ia esperá na porteira, o papai ia nos encontrá
Ele tinha que vortá, pra casinha de madeira.

Depois que nóis jantava, toda noite nóis brincava
E a mamãe ficava olhando, e o papai a espiá
Vendo nóis quatro brincá, e com a mamãe conversando

Lá tinha um pé de paineira, encostando no ranchinho
Todo dia os passarinho, vinham alegre cantá
Um João de Barro, coitadinho, era o nosso único vizinho

João de Barro todo dia, cantava sua melodia
Lá no galho da paineira, o seu cantar sorridente
Até alegrava a gente, na casinha de madeira

A vida era feliz, mas o destino não quis
Veja só que aconteceu:a mamãe ficou doente
Deixou os quatro inocentes, e foi se embora com Deus

No dia que ela morreu, tudo ali se emudeceu
Todo o pessoal foi pra lá, eu pedi sua benção
Na hora de fechá o caxão, eu comecei a chorá.

Mudamos daquela casinha, e ela ficou sozinha
Lá no meio do cerrado, e aquele nosso vizinho
O João de Barro, coitadinho, ficou lá abandonado.

João de Barro foi se embora, não fez mais sua cantarola
Lá no galho da paineira, deixou a casa abandonada
Só levou a sua amada, que era sua companheira

Papai danô a chorá, parou até de carriá
Até despediu do patrão, e fechou nossa casinha
Sem a nossa mamãezinha, fomos morá no sertão.

Já contei a minha história, desde o tempo de outrora
Agora só resta a saudade, vou me despedir, vou-me embora
E pra contá outra historia, só em outra oportunidade.



SÓ VIVO PRÁ VOCÊ

24/03/85
Poesia escrita por Aparecido em 1985, desabafando algumas desavenças matrimoniais.
Reescrito a seguir com texto digitado, com algumas correções, sem no entanto mudar o contexto.


Mulher,

É bem longa a nossa vida, com palavras repetidas
Escute os conselhos meus, eu sou a força e coragem
E trago sempre a mensagem, que assiste diante de Deus

Eu sou a cruz que carregas, fale a verdade, não negas
Mas continua caminhando, mesmo com esta vida torta
Pois eu sou a estrada e a porta, que você está passando

Eu sou a estrada e o caminho, cheio de cipó e espinho
Que amarra o nosso amor, sou o esteio e o palanque
Sou a água dentro do tanque, sou as lágrimas da tua dor.

Sou a estrada e a vida, sou o apoio e a guarida
Das tempestades que vem, sou o impacto do vento
Sou a margem do sofrimento, que a tua vida tem

Sou o verso da vida, sou a esperança querida
Das lágrimas que tu derramas, sou o lago de tua agonia
Sou o barco de sua alegria, que a vida que tu reclamas

Sou tudo o que tu desejas, sou o objetivo que almejas
No sofrimento ou na dor, cumpra a tua missão
Mas não me deixe na solidão, sou seu grande defensor

Sou a trave de tua visão, sou o negro e a escuridão
De uma noite tenebrosa, nas noites de solidão
Serei a porta da imensidão, do seu túmulo serei a rosa.



SAUDADE DA ROÇA

Poema do Aparecido escrito em 1985, onde ele relata seus sentimentos e suas saudades da roça onde foi o seu habitat e a sua grande paixão de vida.
Os versos foram transcritos com correções ortográficas, deixando no entanto, a arte poética e a sensibilidade.


Já está fazendo cinco anos, Que eu mudei pra cidade
Quando alembro da lavoura, eu sinto grande saudade
Às vezes quando estou sozinho, e começo a recordar

Parece que estou na roça, vendo os passarinho cantar
O dia vinha raiando, os passo-preto cantando
Fazia a gente acordar,

Quanta saudade que eu tenho, da roça e do sertão,
Quanta saudade gostosa, que eu sinto no coração,
Das festança dos amigo, nas noite de São João,
Quanta gente amiga, que nóis deixemo pra lá

Eles talvez foro pro outro lado, só eu que estou pra cá
Cada um foi pra uma banda, e mudou pra outro lugá
Talvez argum já morreram, aqueles velho companheiros
Que jamais vamo encontrá,

Eu moro aqui na cidade, mas estou sempre pensando
Nas prantação da lavoura, que está me sustentando
É da roça que vivemos, e nóis estamos abandonando
Todos deixa da roça, e vem ser industriário
Pois a vida de empregado, é um viver solitário

3 comentários:

  1. Paulo,
    Parabéns pelo seu trabalho, pelas sua reminiscências de um tempo que já não mais existe. Confesso que não li todo o seu trabalho, mas gostei muito do que li. Vc já deve pensar em publicar seu livro.

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  2. Obrigado, Eurico

    Está faltando incentivo monetário mas eu chegar lá...

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  3. Olá eu gostaria de saber o nome da moda que possui esses versos:
    "Tomara que o mato seca só pra vê o que a cobra come. Toda cobra tá sumino, só as muié que num some.Muié tem demais no mundo. Tem sete pra cada home"
    Você saberia me dizer?

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